31.1.22

Corpo e meio

Black Country, New Road, “Concorde”, in https://www.youtube.com/watch?v=yjC4qXiBRu4

O corpo exsuda a sua geometria. Olha pelo altímetro da usura que se lê no parâmetro dos seus limites. O corpo diz de si mesmo que há de provar que os limites estão no exterior do estabelecido. É dessa matéria que é feito o corpo que ambiciona ser corpo e uma fração a mais.

Em braçadas compassadas, o corpo rompe o estuário como quem se afiança de um fim. Às vezes, parece que a paisagem desafia a estatura do corpo: ao longe, a paisagem parece apenas um traço fino que não rivaliza com a estatura do corpo. Ele não desmobiliza no areópago onde a paisagem denuncia a pequenez do corpo que a desafia. Nem assim se desmobiliza. Calcorreia as levadas meticulosas que se sucedem em distâncias que não são rarefeitas. Ao cabo da jornada, o corpo vingou-se da paisagem. Entronizou a sua proeza quimérica.

Dizem os invencíveis – aqueles que não acreditam na sua finitude – que esta é a serventia de um corpo: ser o seu próprio deslimite, riscando do mapa das impossibilidades as rasuras que eram a sua contrafação. 

O corpo é a medida válida por que se afere. Grandeza que apenas espera ser desmentida, até que o burel se arregimenta numa fasquia maior. Nesta vertigem, o corpo não acredita em limites. Aposta em vencê-los, provando que eram infundamentados. Se o corpo fosse humilde diria que os limites agora revistos tinham sido reféns de uma aferição não intencionalmente escrupulosa. Seria como se medisse o limite abaixo do possível para o ultrapassar sem ser interpretado como uma empreitada escarpada.  

O corpo deixa de ser corpo e passa a medir-se como corpo e uma fração. Almeja ser corpo e meio. Para se reembolsar num módico de reserva que serve para descontar nas anomalias que a parte inteira vai conhecendo à medida que o tempo for distorcido. Enquanto não precisa da parte restante, apresenta-se garbosamente como corpo e uma fração – como corpo e meio, se o diagrama das intenções não foi atraiçoado. 

Depois, quando perde as rédeas da sua geografia, o corpo que nem sequer chega a corpo inteiro, servido pelo sussurrar da melancolia, será a desmedida da sua pretérita condição.

28.1.22

Projetos de vida: atravessar a Ponte da Arrábida a pé (ou como o óbvio se escapa como o vento entre os dedos)


Beirut, “O Leãozinho” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=RHd4vzekLX4

Se fizesse um inventário das vezes que atravessei a Ponte da Arrábida de carro, seria um número com quatro dígitos. E, todavia, nunca a atravessei a pé – logo eu que, em adolescente, na companhia de uns amigos, escalei o arco da ponte clandestinamente, antes de a empreitada se ter tornado uma atividade radical anos mais tarde. Pelo que vejo, muitos turistas levam avanço sobre mim. Conhecem da minha cidade algo que do conhecimento não habita em mim.

Outros exemplos se podiam arregimentar, provando que somos forasteiros na nossa própria cidade. Precisei de esperar trinta e sete anos para subir à Torre dos Clérigos. Nunca fui à abóbada do Palácio de Cristal. Nunca subi ao que, durante muito tempo, foi conhecido como o edifício que coincidia com o marco geodésico da cidade (o Hotel Portucale). Nunca fui ao palácio árabe do Palácio da Bolsa. Nunca fui ao Jardim Botânico. Mas já fui a Moscovo, Reiquiavique, Seicheles, Valparaíso (no Chile), Capadócia, ou Edmonton (no Canadá).

As pessoas que viajam muito orgulham-se do muito que conhecem. Emprestam um sentido cosmopolita à sua vivência. Pode-se dizer, dos que trotam mundos, que acrescentam sucessivas camadas de cultura à sua mundividência. E, no entanto, são forasteiros nas suas próprias terras, com a agravante de desconhecerem essa condição. Um escritor (de que não me recordo o nome) protestava contra este paradoxo: é insensato que as pessoas partam em demanda de novos e longínquos lugares se ainda não conhecem o lugar onde nasceram, ou o lugar onde escolheram viver, como as suas próprias mãos.

Como estes tempos parecem trazer do passado o ensimesmar nacional – ao que se acrescentam, em alguns casos, acérrimos defensores de paraísos regionais e até locais –, uma certa misantropia geográfica voltou a estar na moda, mobilizando-se contra as facilidades de viajar. As pessoas desaprovam a possibilidade de trazerem ao seu conhecimento o conhecimento de novos lugares. Dispensam o embeber em novas culturas, talvez por mera ignorância, talvez por recearem que a exposição a novas culturas possa adulterar aquela que dizem ser a sua identidade. 

Se for necessário escolher entre duas extremidades (um cosmopolitismo militante que convive com um limitado conhecimento da cidade nativa; ou o mergulho na idiossincrasia local sem dar espaço ao estrangeiro), prefiro ser um cosmopolita que admite não conhecer o óbvio da sua própria cidade. Enraízo mais conhecimento com o conhecimento que o desconhecido me traz do que esquadrinhar o chão familiar ao milímetro. Mesmo que o preço a pagar seja sentir que o óbvio se escapa entre os dedos.

À Ponte da Arrábida, esta mnemónica: posso atravessar-te a pé, a qualquer momento.  

27.1.22

Extradição (short stories #373)

No Words Left, “Pictures of Your Mind”, in https://www.youtube.com/watch?v=6jgx3epsOBI

          Arrumado o mapa, não ficava inventário em pendência. Contra as convenções do idioma, havia extradição sem ter sido completada contra a vontade do extraditado. Foi ele que se retirou do lugar habitual e demandou nova morada. Podia-se argumentar que é um caso de exílio, por ser voluntário. Ele insistia: era extradição. A recusa do lugar devia-se ao apelo pelo lugar outro, demandado com o abandono do lugar que já só era casa da partida. Sentia-se desapossado do sangue tingido por uma identidade. Mas não era de vazio que se alimentava. O esvaziamento foi ditado pela convocatória do outro lugar. Era como se este lugar tivesse um íman e ele não pudesse recusar a partida. O lugar que era a casa da chegada tinha requerido a sua extradição. Como se a alma se transfigurasse ao saber da convocatória do outro lugar. Talvez fosse apenas um pretexto para jogar com uma metáfora: o apelo do outro lugar não ateava a vontade contra os alicerces que se compuseram até a essa altura. Não se diga que a vontade se dissipou. Pois que, nesse caso, poderiam epilogar – e com propriedade – que a sublimação da vontade à convocatória do lugar da casa de chegada seria um pretexto para abandonar a casa da partida. Para desse lugar fazer a casa da partida, exangue no seu recurso, em vias de extinção no tabuleiro em que se terçam as novas peças. Na noite em que as horas não tinham peso, o pensamento vogou na mais pura liberdade. Não foi grande ajuda. Os poros costuraram a ascese sem saber do paradeiro do pensamento. A obstinação não deixava de permanecer como seu par. A resolução estava escriturada no altar das intenções. A obstinação prevenia a cautela da marcha-atrás. Com a manhã, veio a revelação do novo mapa. O mapa depois da extradição consumada. Atirou-se a ele, de corpo inteiro.

26.1.22

O cão que corria para trás e o DJ surdo

The Fall, “Dog Is Life/Jerusalem”, in https://www.youtube.com/watch?v=56op4fd7ezY

O cão não suportava vozes aos gritos. Do aulido concluía tratar-se de gente em desavença e o cão nascera com a impressão digital do pacifismo. Não aprendera nada da vida. Já fora maltratado um punhado de vezes (por uns ganapos imersos na adolescência irrefreavelmente beócia; por um psicopata com cabeça a prémio pelo manicómio de onde fugiu; por uma peixeira que acordara com as águas poluídas). Confiante na bondade humana, não deixava de mendigar afetos aos humanos que por ele passavam na rua. Era um otimista incorrigível, o cão. Acreditava mais na espécie humana do que a maioria dos humanos.

Quando estava nas imediações de uma altercação e notava as vozes que se punham insuportavelmente ruidosas, o cão desatava a correr às arrecuas. Latia com lampejos de desespero, como se o conflito de onde sobravam vozes alteradas fosse uma admoestação ao cão por ser vadio. Não era por isso. O cão limitava-se a fugir o mais depressa que podia para um lugar de onde não se ouvissem as vozes transtornadas. Desorientado, o cão corria do avesso. Mostrando aos humanos que a beligerância não é o seu estado natural. De tanto querer ensinar os humanos, o cão não se apercebia como estava errado.

Um dia, numa desalmada fuga que deixou atónitos os transeuntes que testemunharam a correria às arrecuas, o cão esbarrou num homem. Dir-se-ia que o homem ia distraído e não notou os comentários espantados de quem via o cão a correr para trás. O embate deixou o cão aturdido, quase a desmaiar. O homem arrependeu-se da distração inamovível. Já lhe acontecera pior: atravessar ruas com o semáforo vermelho para os peões, atirar o café para o lixo enquanto abria a saqueta do açúcar, esquecer-se do troco em estabelecimentos comerciais. Sair à rua com a braguilha aberta era o habitual.

Desta vez, o homem tinha de ser ilibado. A surdez evitou que desse atenção ao burburinho que se gerara por causa do cão desaustinado que corria do avesso. Desatento, deu-se a coincidência de dobrar a esquina no momento em que o cão, vindo do lado contrário, fez o mesmo. O homem, afamado DJ (por causa da surdez) ficou enervado. Podia ter ferido o cão. Mas o cão recuperou o norte ao fim de alguns segundos, ficando inerte aos pés do DJ surdo. Alguém disse ao DJ surdo (sem saber da sua surdez; mas ele conseguia ler os lábios) que o cão detestava ruído exacerbado. 

O DJ surdo teve imediata empatia com o cão. Custou-lhe ver o cão quase inanimado por ter esbarrado nele. Não ficou indiferente ao cão aninhado a seus pés. E pensou no futuro: se o cão era sensível ao ruído e ele, surdo, podia morrer por não dar conta de um ruído ameaçador, melhor seria que acolhesse o cão em casa e o trouxesse de cada vez que saísse à rua.

E assim o cão que corria do avesso passou a ser o cão-guia do DJ surdo.

25.1.22

Para que serve uma campanha eleitoral? (Sobre a desvirtude de lançar areia para os olhos)

Spoon, “Wild”, in https://www.youtube.com/watch?v=eDPhsByCL_o

Primeira interrogação: as campanhas eleitorais servem para definir o voto ou para o alterar durante o seu curso? Ou, de outra forma: há eleitores permeáveis aos desenvolvimentos de uma campanha eleitoral? Excluam-se das interrogações os episódios sísmicos que podem mudar o curso de uma eleição – uma revelação bombástica que desonra um candidato, uma declaração desastradamente pomposa que destrói todo um capital de credibilidade que houvesse, só a título de exemplos –, nas demais situações custa a crer que uma campanha eleitoral seja o fator que decide uma eleição.

Pressuposto de análise: do posto de observação em que me situo, tomo a análise como o cenário que me influencia. Não pretendo ser a árvore representativa da floresta, nem reclamo, a meu desfavor, o estatuto de cidadão iluminado que sabe recusar os múltiplos logros (de mensagem e, sobretudo, comunicacionais) de que é composta uma campanha eleitoral. Este é apenas o posto de observação que posso testemunhar.

O fator abundante em campanhas eleitorais é a ocultação de verdade e a mentira premeditada, a mentira sem escrutínio que pode influenciar o eleitor médio, o vazio de ideias, as propostas irreais (que, iludindo o eleitor, constituem mentiras), os ataques pessoais quando o tapete foge sob os pés do candidato ofensor. Raramente uma campanha eleitoral consegue ser esclarecedora. Na pior das hipóteses, pode levar as pessoas a votarem num partido porque caíram no logro da mensagem deturpada, do ataque pessoalizado sem fundamento, da distorção da História, da ocultação do passado, da adulteração de factos. A parte substantiva de uma campanha eleitoral corresponde a deitar areia para os olhos do eleitor. O que não devia passar de um método – e de um método que, se a honestidade intelectual fosse o perímetro de ação, não seria admitido – passa a ser a substância. Será, talvez, porque os candidatos possuem informação fidedigna de que o eleitor médio não sabe distinguir o acessório do essencial e não percebe quando lhe atiram areia para os olhos. 

Quando a desonestidade intelectual corta transversalmente o discurso de um candidato, e quando não há meio efetivo de escrutinar quanta desonestidade intelectual está contida nos episódios que preenchem uma campanha, qual é a serventia das campanhas eleitorais? Os candidatos esgrimem entre si numa cortina de sombras que deixa vir à superfície sucessivas mentiras que se escondem no princípio geral da desonestidade intelectual. As campanhas eleitorais tornaram-se fatores de desconstrução (no que à palavra se associa uma conotação negativa), de adulteração, de ocultação, de enviesamento intencional, de ataques pessoais quando um candidato se sente acossado. Tornaram-se o palco privilegiado para atirar areia para os olhos dos eleitores e, ato contínuo, retirar dividendos da operação.

Se não fosse por obrigação profissional (mais do que por imperativo de cidadania), recusava-me a ser espetador de noticiários televisivos e leitor de páginas de jornais que retratam o andamento de uma campanha eleitoral. Com o passar de sucessivas eleições, a degradação da qualidade das campanhas eleitorais tem aumentado. Se um eleitor souber em quem vai votar antes da campanha, evitar as sinuosidades de uma campanha eleitoral é um exercício heurístico. Para os demais, é muito provável que a decisão seja influenciada por episódios que correspondam à sua posição de agentes passivos a quem a areia é atirada aos olhos. E, como é sabido, quando temos areia nos olhos não se pode dizer que o olhar seja trespassado pela lucidez.

24.1.22

Antologia (em Istambul também neva)

Yard Act, “The Overload”, in https://www.youtube.com/watch?v=tQ2ANR_vF2E

Parecia que o estuário tinha sido preparado para eles. Esperavam pelo entardecer. Por um lugar-comum: 

- Aqui o ocaso deve ser esplêndido. 

Ele não quis discordar (sem ter motivos para concordar). Ela tomou o silêncio como anuência. Foi em silêncio que os minutos seguintes foram percorridos. Ou melhor: ela fazia do silêncio a fala interior que costurava as bainhas dos pensamentos avulsos que pareciam ter sido paridos em demanda de moldura extravagante, precisamente a que se adiantava aos seus olhos; e ele, absorto, como se a superfície do copo de vinho alojasse uma quimera e até fosse mais importante do que o vinho (que tinha sido escolhido a dedo por ele).

- O sol que desmaia não é um ocaso. Amanhã o dia renovado cuidará de o confirmar. O sol que desmaia é uma jura. Do dia que terá vencimento assim que o sol o trouxer às costas, derrotando a penumbra. 

Outro lugar-comum – pensou ele, interrompendo a mudez que só o tartamudear da cidade, quase a ficar cansada, interrompia. Não havia mal: quem não fosse refém dos lugares-comuns, mesmo daqueles que não são reconhecidos como tal, que ostentasse a distinção da originalidade. Não havia mal: as palavras foram ditas com ecos de poética. 

Ela continuava a insistir em derrotar o silêncio instalado:

- Se fosses desafiado a fazer uma antologia da tua vida, uma síntese que não ocupasse mais do que cem palavras, estavas preparado para responder?

Impávido, com o sol desmaiado a tomar conta do olhar, não ignorou a demanda. Acenou com a mão que estava livre, como que diz “preciso de algum tempo para pensar no assunto.” Não era cómodo deitar contas à vida para selecionar acontecimentos que constituíssem uma antologia. Alguns seriam inconfessáveis, porque uma antologia não se compõe apenas de proezas ou de momentos que ficam emoldurados na memória em forma de autorecompensa. O maior embaraço era ter de olhar em retrospetiva. Por vezes, era acusado de esquecimento seletivo. Ele contrapunha tratar-se de uma intencionalidade metódica: o passado era uma usura quando as suas sombras se deitavam no mapa do presente – era como se o passado colonizasse o tempo vivo e insurgia-se contra este lado totalitário das reminiscências. Ela aguardava. Sabia que ele não era leviano e não ia dar uma resposta gratuita, apenas com o propósito de não deixar deserto o desafio que fora feito. 

O silêncio mantinha-se, desta vez acompanhado por uma coreografia do corpo que revelava desconforto. Não estava a conseguir ligar-se ao pretérito. Era como a linha do horizonte fosse uma barragem que impedia o tempo passado de voltar a ser altar. Não percebia o exercício para que fora desafiado. Seria um jogo? Estaria ela à espera de ser desafiada de volta e, com isso, era como se estivesse a pedir para que fosse ela a revelar, em primeira mão, a sua primogénita antologia? As hipóteses atropelavam-se, fundidas com a amálgama interior que se tinha apoderado dele. 

Socorreu-se do telemóvel, ainda em silêncio. Podia ser que ela entendesse que não queria, ou não podia, corresponder ao desafio. Na página onde habitualmente atualizava as notícias frescas, uma fotografia de um nevão em Istambul serviu de mote:

- Como vês, também neva em Istambul.

E ela, entusiasmada por fenómenos atmosféricos irregulares e por fotografia artística, agarrou no telemóvel e desfiou as fotografias que ilustravam a notícia. 

21.1.22

Deus é socialista (ou o c***lho)

Cat Power, “Bad Religion” (live at the Late Show With James Corden), in https://www.youtube.com/watch?v=90qsTpEqjHA

Crónica de descostumes: deviam decretar, com força retroativa e vinculativa, a irrepreensibilidade do socialismo. A boa ciência descobrirá que até deus já se convenceu que o socialismo, e só o socialismo, oferece condições para dirimir os conflitos que sobressaltam as sociedades. A páginas tantas será dito, por deus em pessoa (perdoada que seja a contradição de termos), que ele é que inventou o socialismo e só uma pérfida conspiração de capitalistas e de decadentes opositores do socialismo impediu a revelação de ganhar voz própria.

(Vozes contrárias oporão que se deus se deixou ultrapassar pela vontade humana que se jogava contra o socialismo, é porque deus não existe e, ato contínuo, ao socialismo não pode ser imputada a sua ontologia divina, nem a condição genesíaca de que os seus advogados de defesa se protestam.)

O socialismo é sobre justiça social. É sobre a quimera de tirar aos mais ricos para oferecer ao mais pobres, com a intercessão de deus, que semeou nas mentes que diligenciam a mais avançada engenharia social as ferramentas para operar a redistribuição. Deus sempre esteve do lado dos desvalidos. É como os socialistas.

(As mesmas vozes opositoras perguntar-se-iam, perplexas, se os socialistas tiveram criação antes mesmo de deus legar a sua obra heurística sobre o planeta. Perante a magnificência do socialismo, que não seja excluída a hipótese de deus ter sido criado por socialistas primevos. A linha do tempo que cauciona o substrato da História devia mudar para a.S e d.S: antes do socialismo e depois do socialismo.)

O deus socialista não dorme em pé. Com as suas extraordinárias faculdades – entre as quais a imorredoira insónia, exigível para deus não se desacautelar e deixar os fracos e os oprimidos à mercê dos algozes que os oprimem intencionalmente –, deus não desacompanha os desprivilegiados. Encontrou empreitada suplementar: instruir os seus embaixadores na Terra para estarem de atalaia às injustiças que tornam a sociedade um lugar imperfeito. Só enquanto estiverem de atalaia podem corrigir as iniquidades. 

(Nota divina: esses embaixadores não são, contra os melhores prognósticos, os padres. São os ideólogos do socialismo e os seus executores.)

Deus não desiste de arquitetar uma sociedade melhor, mais justa, mais igual, sem as assimetrias que hoje a infetam com um abcesso purulento. Em congresso extraordinário, instruiu os socialistas embaixadores terrenos para ganharem eleições, convencendo os eleitores que eles, e só eles, estão em condições de exarar as costuras de uma sociedade prometidamente perfeita. E se aos costumes as vozes opositoras esbracejarem as porém persistentes desigualdades, apontando, ao mesmo tempo, o dedo às responsabilidades socialistas passadas na regência dos lugares, logo deus (com um afinado e afincado coro de socialistas) contraporá: deus (e o socialismo) é bondade; o seu antónimo é produto da vontade dos homens que não se reveem em deus (e no socialismo).

Ámen – e glória seja louvada ao Costa.

20.1.22

Procuração

Fontaines D.C., “Jackie Down the Line”, in https://www.youtube.com/watch?v=3AoOfJP3r40

Escolhias a casa da partida. Era-te dado esse privilégio. Porventura, nem davas conta. Escolhias a casa da partida e parecias não perceber. Protestavas contra o que não tem importância. Contra os nadas que não tinham tamanho nem convocavam qualquer sobressalto. Limpavas do horizonte a tela ensolarada e deixavas que ao de cima viesse o cardápio de nuvens tempestuosas. Esperavas pela chuva. Contra os caudais estabelecidos. 

Se da casa da partida te era dado a saber a vantagem de a saber escolhida, podias não protelar a condição oferecida. Que não quisesses saber de presságios, ou de superstições que esbarravam na racionalidade de que te julgavas empossado, era compreensível. Cada um toma-se pela métrica que se afere. O que não se podia desculpar era a indigência da oportunidade que desperdiçavas. Porque a desperdiçavas intencionalmente. 

Haveria de chegar o momento crucial em que a interrogação já não podia ser recusada: o que pretendias com a errância de que eras propositadamente refém? Não reconhecias legitimidade à interrogação. Não eras, ao que parece, o contexto que se oferecia à interrogação assim formulada. Admitias que a teimosia embaciava a lucidez que peticionava o seu lugar. Admitias que nem sempre jogas com os dedos inteiros, deixando de ter serventia o privilégio da casa da partida que te foi dada a escolher. Não sabias encontrar as razões. O que estilhaçava o império da racionalidade que te era matéria estrutural.

Intuías que o amanhã era uma metáfora fortuita. Não falavas esse idioma e não fazias nada por o aprender. Antes que uma maré tumultuosa arrancasse as veias ao seu sopor, traduzias o sangue em fala diplomática. Mesmo sabendo que a fala diplomática se compõe nos interstícios das palavras, como se os segundos sentidos deixassem de ser peças sobressalentes e passassem a ser as quimeras que nos guiam. Dizias: eu não tenho medo de não saber a geografia do amanhã. E entregavas-te ao avesso do tempo, como se o passado viesse colado ao futuro e, num colossal paradoxo, os opostos se traduzissem numa só coisa.

Deixaste desalgemadas as asas do mundo. Como querias o teu pensar, a tua vontade irrefreável como mandato centrípeto. Falavas ao vento, como se as palavras fossem transfiguradas nos nomes de pessoas sem rosto. Contavas, numa aritmética conspícua, as cordilheiras que haverias de ascender. Nem que fosse para descobrires o caminho de volta. 

19.1.22

O direito à farra

Beastie Boys, “(You Gotta) Fight for Your Right (to Party), in https://www.youtube.com/watch?v=eBShN8qT4lk

(Ensaio de delirante cenário caseiro depois de sabidas as sucessivas farras do Boris enquanto a quarentena estava no auge – sem que isto seja um branqueamento das farras borisianas)

Estavam todos exaustos. Era um pouco de desnorte e muito de incerteza que embaciavam a lucidez dos regentes da nação. À saída do Conselho de Ministros, um dos mais jovens e rebeldes ministros desafiou os demais para uma festança à porta fechada. “Ninguém saberá, nada temam! Precisamos de desopilar desta terrível empreitada.”

O primeiro-ministro gostou da ideia. O governo estava a precisar de uma injeção de ânimo, que dele muito precisava para arregimentar a coragem para pegar a pandemia de caras, sem tibiezas. Era a maior prova dos nove e, tempos depois, arranjar-se-ia um caldinho qualquer para convocar eleições antecipadas com o propósito de embolsar a maioria absoluta (o sonho húmido dos déspotas disfarçados). Calculista como ninguém, o primeiro-ministro deu o mote depois do mote do seu rebelde ministro: “Vamos lá ver: se ninguém souber da nossa farra, vamos a isso, que estamos precisados de carregar as forças.”

Nenhum dos subalternos ousou um esgar antes de o chefe reagir ao desafio do mais trotskista dos membros do gabinete. A ministra da cultura arranjou o material necessário para a diversão. Foi ela que contratou, em segredo e com exigência de confidencialidade, um DJ. O ministro da economia chamou a si o catering (que a forra é exigente para os corpos e, assim como assim, ninguém tinha jantado por causa do Conselho de Ministros que se prolongou para além de uma hora decente do jantar). 

O palco estava montado. Alguns ministros desembaraçaram-se de peias mais depressa do que outros. A ministra do trabalho foi a primeira a saltar para a pista de dança assim que os néones psicadélicos rimaram com os acordes sincopados da música techno. A seguir foi a ministra dos assuntos parlamentares que despiu o blazer senhoril e deu o seu pé de dança. Ficou provado que os mais tímidos se transfiguram à mercê da dança. Sem demora, a ministra da saúde pulou para a pista de dança como uma pulga excêntrica enquanto abanava os braços acima da cabeça, como se desse instruções à música – por coincidência, a música que passava era (como dizê-lo?) levemente ininteligível, como se os compositores se pautassem por uma linguagem de trapos. 

Os ministros não podiam ficar passivos, por mais que a discriminação positiva seja da preferência do governo. Depois de três uísques quase de supetão, o ministro dos negócios estrangeiros regressou aos seus tempos histriónicos e, muito embora a música não combinasse com as suas preferências (até de investigação científica: o rock), deixou que fosse o álcool a falar por si. Parecia o croner dos Happy Mondays, aquele rapaz que se limitava a dançar em palco, desmembrando o corpo numa coreografia hipnótica.

Um secretário de Estado mais jovem desembaraçou-se da camisa e insinuou a sua tardiamente imberbe sexualidade junto das ministras que continuavam a dançar com uma energia contagiante. Uma das ministras (mantém-se o anonimato para não haver mosquitos por cordas com o consorte respetivo) enredou-se no secretário de Estado numa coreografia lúbrica, para gáudio dos demais. Ainda foi possível ouvir o primeiro-ministro, já a noite ia longa, a berrar impropérios contra os parceiros de coligação que, de acordo com sua excelência, eram mais falsos do que Judas. O jovem e rebelde ministro que deu o mote para a farra não apreciou o comentário do seu superior hierárquico, mas deu o devido desconto que o álcool jorrara com abundância.

A farra terminou já a luz diurna acompanhava o dia nascituro. Naquela manhã, os ministérios estiveram por conta dos subalternos. Não houve um único ministro a ir ao gabinete. 

Não se notou a diferença.

18.1.22

Aquelas mãos que eram um mapa de rugas


Não se disputam as credenciais de umas mãos que são um quadro inteiro de rugas. A idade avançada orquestra-se nas cavidades conquistadas a custo pelo envelhecimento substancial. Umas mãos assim enrugadas são o bilhete postal da senescência. 

E, todavia, os olhos detêm-se no mapa farto de pele amarrotada como selo de vivência demorada. Os lugares-comuns aprestar-se-iam a glosar o princípio geral da delongada experiência de vida como selo farto daquelas mãos. Seja permitida a divergência do estabelecido: uma vida estendida na linha do tempo não é sinónimo necessário de experiência aquilatada. Que não se esqueçam os observadores destes fenómenos que não é pelos números que se aferem medidas destas.

Para os olhos que se detêm nas mãos que são um mapa de rugas desfilam interrogações incessantes: os pesares que pesaram sobre o corpo em que repousam as mãos observadas; as aturadas empreitadas de que terão sido tutoras; os descuidos que não quadram com o hedonismo consagrado pela modernidade, que encomenda à indústria da cosmética cremes que retardam o engelhar da pele. Todas as interrogações são deixadas em banho-maria, para posterior indagação (se ainda houver vontade em autorizar a indagação quando a posteridade reivindicar o seu lugar). 

As mãos possuídas pelas rugas sinalizam a melancolia? Outra vez a desaprovação dos lugares-comuns: não se diga que aquela mulher é um étimo de sofrimento porque os olhos esbarram nas mãos tão marcadas por um tempo que terá sido madrasto. Pode ser um acaso da genética – ele não há pessoas que envelhecem antes do tempo e escondem o fenómeno nas rugas que apenas se apresentam nos corredores do pensamento?

Os limites da loucura não são rasantes às rugas fundas que adulteraram o mapa original da pele. Segundo os apóstolos dos lugares-comuns (sempre tão em voga – sempre tão festejados pela turba, que se enamora pelo fácil e expedito), ninguém foge da velhice e da metamorfose dos corpos que acompanham a irremediável sinfonia do tempo. As mãos da mulher velha são como uma cordilheira cheia de abismos e alcantiladas saliências. São intransponíveis. Não se alisam na intenção de devolver uma segunda oportunidade ao tempo gasto.

As mãos estão entrelaçadas porque se habituaram a ler as cavidades que foram ganhando expressão como prova da demorada existência. Entrelaçam-se uma na outra, à falta de outras que nelas se afaguem. As mãos como mapa de rugas são (muito possivelmente) a metáfora de uma viuvez precoce.

17.1.22

Carta aberta aos demónios

Metronomy, “Things Will Be Fine”, in https://www.youtube.com/watch?v=Lbb5AkLWDzQ

Ninguém sabe como é mergulhar num mar tempestuoso. Dizem os peritos que um mar destes é assassino – daí não haver notícias do fundo marinho quando o mar mostra o seu rosto facínora. Se os mortos pudessem falar, alguns deles saberiam ser testemunhos válidos, se conseguissem arregimentar a lucidez perdida no crepúsculo da agonia e se o mar não fosse turvo.

Ninguém sabe das intenções logradas que nem sequer chegam a ser planos. A voragem do tempo contenta-se com o sacrifício das intenções condenadas a serem malogradas. A página que se vira salta outras que seriam a intercessão por um plano diferente. As páginas saltadas são os palcos que não chegam a ser pisados. Deixam de ser paradeiro dos passos, assim feitos párias. Não nos entregamos ao desconhecido, a não ser por óbice ajuramentado contra as dores que são a consumição existente.

Ninguém se adiante ao Alentejo se a demanda é para Norte. A geografia tem o seu domínio. Exige-se, aos viandantes, que saibam para aonde vão e como vão lá chegar. As bússolas não rareiam. Não se justifica que haja quem erre por ermos lugares à espera de saber onde se situa. O pensamento transita de lugar em lugar como razão válida para ser consultado.

Ninguém se encontra perdido na aridez do tempo. Ninguém se consegue esconder do tempo. Depois da manhã sem sombras, quando o nevoeiro enfim se desalimenta do dia, os olhos desembaraçam-se das algemas que os prendiam às reservas mentais. O odor da liberdade é incomparável. É a latitude que basta para sentir a grandeza da alma, que já não se despenha no precipício coreografado pelos algozes, que entretanto se desativa. 

Ninguém se oferece de graça à morte. Ninguém, entre os vivos, pode dizer de viva-voz o que é a morte. Não se concebe que alguém possa ser sequaz da loucura em nome próprio. Até que as portas se abram para o destino sem remédio. Nessa altura, em que já não tem serventia terçar armas contra o fado inapreciado, o corpo inteiro entrega-se à morada final. Ninguém sabe estimar tamanha desquimera. 

14.1.22

O autocarro para a Viela do Poço Negro

Madrugada, “Nobody Loves You Like I Do”, in https://www.youtube.com/watch?v=eZc16uncwnQ

Quantas são as noites indeléveis que se sublevam contra os sentidos? Quantas são as palavras embaciadas que ficam à boca da boca e que ficaram por dizer por medo da ousadia? Quantas vezes foram vãos os desejos armadilhados? Quantos adiamentos pesam sobre o dorso dos meãos? Quanta é a distância que falta até sermos diamantes?

De passagem, um autocarro a precisar de restauro. Era o elemento mais ruidoso da cidade tonitruante. Ali ao lado, um ferro velho dedicava-se a empalhar carcaças de carros sem serventia, mas não conseguia ser mais ruidoso do que o autocarro quase sucata. O autocarro tinha como destino a Viela do Poço Negro. Olhou para os passageiros e sentiu comiseração por eles: “quem apanha um autocarro para a Viela do Poço Negro?” (“Pior, só o autocarro que vai para o Desterro.”)

Não podia prever os passos seguintes das vidas que compunham os passageiros. Se a memória não o atraiçoava, ainda havia uma dúzia de paragens até à Viela do Poço Negro. Talvez alguns passageiros saíssem antes. Estariam a salvo? E a salvo de quê? Ele nunca fora à Viela do Poço Negro. O preconceito abatia-se. Um poço negro não é necessariamente o selo de um lugar soez. Muitas vezes, os nomes são apenas metáforas dos lugares a que dão nome. 

Apanhou o autocarro seguinte para a Viela do Poço Negro. Iria até ao fim do percurso, sem sair numa das paragens que distavam até à Viela do Poço Negro. Devolveu a si mesmo o opróbrio que encomendara, gratuitamente, aos passageiros do autocarro antecedente. Ele ia para a Viela do Poço Negro e isso não dizia nada sobre a sua pessoa. Mesmo que a Viela do Poço Negro fosse um lugar ermo, sem pergaminhos para a morada de pessoas, que ninguém fosse mesquinho e agrilhoasse ao lugar uma têmpera desrecomendável. 

Não são os lugares que se desrecomendam. São as pessoas. Estava quase a materializar a convicção, antes de desembarcar na Viela do Poço Negro. Quando o autocarro terminou a viagem, ele era o último passageiro. Perguntou ao motorista se era habitual o autocarro terminar a viagem na Viela do Poço Negro sem passageiros. O motorista, atónito, pôs de lado o jornal e respondeu: “o senhor não sabe o que são acasos?” 

E ele insistiu, nos seus pensamentos herméticos: as pessoas é que são desrecomendáveis. 

13.1.22

Nas costas da imensidão

Spiritualized, “Crazy”, in https://www.youtube.com/watch?v=3vCcjlcJ8JM

Possivelmente enganado: não era curador a não ser das dúvidas que a maré dava à manhã. Um pouco como uma maré contraditória: o que mais se media eram certezas contundentes, imperativos categóricos. Estava por determinar se quem as bolçava o fazia como estalão da profunda ignorância, ou se era uma defesa contra as fragilidades em que medrava.

Tudo à volta é de uma imensidão que quase rivaliza com o infinito. E, todavia, quando voltamos o olhar para dentro descobrimos a exiguidade. Não é contradição. Jogam-se planos diferentes. Que ninguém se admire com as diferentes órbitas que confluem num estuário que reconcilia os contrários. Talvez os que de si têm uma imagem sumptuosa sofram os maiores sobressaltos ao serem confrontados com âmbitos diametralmente opostos. Estão habituados a terem de si próprios uma imagem que é maior do que a escala por que se regem. Quando são atirados à imensidão que é exterior, sentem-se pequenas embarcações, autênticos barquinhos de noz, à mercê da vontade de um mar deslimitado. Sabem que a sua vontade é irrelevante. Sabem que são irrelevantes no meio de um mar imenso. Mas não o reconhecem.

Só estamos em paz interior ao percebermos a pequenez em que nos alojamos. Levanta-se uma aragem de perplexidade quando olhamos à volta e anotamos os desabridos personagens que insistem que são peças centrípetas do mundo. Só se o mundo se resumir às suas tão pequenas pessoas, o que revela a ideia do nanismo em que se debatem, fingindo não ser esse o seu covil. Tudo se resume ao fingimento. A métrica representativa da existência geral. Muitos intuem a grandeza que os assola em pesadelos disfarçados de sonhos. A insistência cobra-se na ilusão que os acompanha, duradouramente. Lançados os dados, o que fica à mostra é a sua insanável pequenez.

É nas costas da imensidão que somos figurantes. Desenganem-se os que aspiram a condição de atores, o estrelato inconsequente que se consome num momento sempre efémero, por mais que se arraste no tempo. Não conseguem passar de aspirantes. São como marinheiros demenciais que levantam âncora, sabendo do mar tempestuoso que será o lugar tumultuoso em que será feita a sua expedição. Não é uma aventura. É o lugar demencial que edificam como sepultura ajuramentada. Enquanto o fado desafortunado não os golpeia de vez.

12.1.22

Património restante (short stories #372)

Alt-J, “Hard Drive Gold”, in https://www.youtube.com/watch?v=_7-r0KON9GI

          O chão não se mede em viveiros. Ninguém era dono do seu chão se os coletivistas tivessem vingado. Seríamos, num certo sentido, apátridas. Pois o chão que nos cabe em sorte é um módico de identidade. Dirão: há quem seja apátrida por opção, gente que não quer tanger as graças da propriedade. Não serão apátridas como os que seriam esbulhados do seu património por ação de uma ideologia consagrada como sucedâneo de religião estadual. Não são apátridas por coerção. Seu é outro património, imaterial. Um património que não é comparável com ninguém, pois é representado por sensações e fragmentos de memórias e de pessoas. Um património sem valor. E, por isso mesmo, o património mais valioso. O chão de que dizemos ser parte de uma pertença é um chão que se acolhe sob os nossos pés. Hoje é este, mas amanhã pode ser outro. A itinerância liquida os vínculos. O chão reduz-se à sua materialidade. Tem um preço, que varia com os humores dos mercados, mas é um preço volátil: depende mais da avaliação dos outros do que da avaliação do próprio. Não comporta sensações e fragmentos de memórias e de pessoas que emprestam um valor inestimável a esse chão. Às vezes, as pessoas desprendem-se das sensações e fragmentos de memórias e de pessoas quando mudam de lugar. Podem transportá-los consigo, mas desanexam-nos do chão que lhes deu origem. É um património indelével. Um sarcófago que acumula sensações e fragmentos de memórias e de pessoas que são inventariados pelos diferentes titulares que se sucedem na propriedade do espaço. Esta atomização pulveriza as sensações e fragmentos de memórias e de pessoas embebidos num chão qualquer. Diminuindo-lhe o valor patrimonial. Os mercados não são confiáveis na atribuição do valor a um chão. Eles ignoram os elementos imateriais que são a caução de um chão. 

11.1.22

Matemática avençada

Black Country, New Road, “Concorde”, in https://www.youtube.com/watch?v=yjC4qXiBRu4

Uns regentes por aí, que adoram jogar com as estatísticas. Gostam quando torcem tanto o braço aos números que, por fim – e com a indulgência da turba amestrada ou suficientemente anestesiada –, os números falam aquilo que eles querem que seja falado.

Não se trata de matemática avançada. Todo o seu contrário: ele há tanta manipulação, tanta ocultação de dados, todo o cenário ensimesmado que recusa comparações (que serviriam de desmentido das loas que os regentes e seu séquito tecem), que desta matemática se dirá ser uma matemática distorcida. Uma matemática avençada, pois está de avença tomada ao ser obrigada a falar uns números que serão ornamento da mensagem que pretendem apregoar.

A matemática avençada é prima próxima da má engenharia. A que se indispõe nos cálculos e arrepia caminho a estruturas que tremem ao primeiro abalo sísmico, podendo desabar como sinal da inépcia dos seus autores. A culpa sobrará sempre para o sismo, não para quem não soube acautelar as suas consequências. São terríveis, as consequências da matemática avençada. Se a audiência estiver distraída, ou se for suficientemente amestrada, não será muito diferente de ir a uma feira e comprar ao feirante bem-falante e espalha-brasas mercadoria que, saber-se-á pouco depois, é contrafação. Talvez as pessoas se satisfaçam com contrafação. Estão no seu legítimo direito. Não se estranhe a confusão entre matemática avançada e matemática avençada. Não saberão distingui-las. A matemática oferecida pelos regentes será tomada como matemática avançada. Nem que seja a prova irrefutável do atraso que se condensa na urdidura do tempo, contra a anestesia dos súbditos.

Como ser acrítico faz escola – nada melhor do que a bovinidade instalada para não haver questionamentos incómodos –, a matemática avençada não é entendida como tal. São uns lampejos acendidos pelos números que interessam, sem procurar indagar se outros números não servem de contraditório. O que conta é o primeiro número servido pelos néones dos cartazes que encimam praças e rotundas. O número que interessa servir no prato arrefecido da população diligentemente hibernada. Mas os regentes anunciam, pomposamente, que já não trazemos à lapela a mácula da iliteracia. Eles precisam de anunciar uma realidade que seria desmentida se a matemática não fosse avençada. Sobrevivem porque constroem cenários idílicos, sem correspondência com o chão que pisamos.

O grande logro espalha-se de uma extremidade à outra do lugar. Um vírus silencioso que deixa os desatentos observadores na posição de seguidores acríticos do estado de coisas que os compromete a arrastarem-se num atraso irremediável. Com o beneplácito de quem aplaude estruturalmente regentes desta cepa.

10.1.22

O diabo não precisa de advogado

PMDS, “Solaris”, in https://www.youtube.com/watch?v=njdp0mOu5Bo

O efeito dandy da modernidade: não se esportula o chão se ele está ávido de travessuras. Pode-se falar de diabruras inocentes ou das que entronizam a maldade. Os intérpretes disfarçam-se sob o véu líquido que esconde a sua transparência. Mas não são transparentes. Se não, tinham de embaciar o pano da maldade, que só se conheceria depois da sua congeminação produzir efeitos.

Diz-se: o advogado do diabo. Contudo, o diabo não precisa de advogado. Defende-se em causa própria. Aliás: não se defende; ataca, inapelavelmente, antes que as vítimas, escolhidas a dedo ou apanhadas no alpendre do aleatório, tomem conhecimento da sua condição. Por que precisariam os diabos de um advogado que os defenda? Até os piores facínoras, cujos crimes ascendem à vista desarmada mesmo antes de serem levados a juízo, têm direito a organizar uma defesa perante as acusações. O diabo também precisa de um advogado se for apanhado pelos tentáculos da justiça e for levado a julgamento.

Mas o diabo dispensa o advogado. É o seu próprio advogado. As travessuras, independentemente do seu jaez, aderem a alguma intencionalidade. Não são um adorno da negligência. Como entidade dolosa, o diabo tem consciência dos atos. O orgulho de ser quem leva-o a prescindir de um advogado. Ele constitui-se advogado de si mesmo. Não para o exterior, que não reconhece como legítima a lava da justiça dos Homens. O diabo é o seu próprio advogado para poder continuar a executar as iniquidades que o distinguem. 

No limite, o advogado nem precisa de ser o advogado de si mesmo. Ele não é sindicável pela consciência. Não tem consciência. O cortejo de crueldades tem o condão de arrastar uma procissão de vítimas. E o diabo não se comisera das vítimas que semeia. Por que haveria de ter um advogado?

7.1.22

Um unicórnio para cada um (ou: está um calor de ananases)

Johnny Cash, “Personal Jesus”, in https://www.youtube.com/watch?v=qpYW3qng78E

As duas metades do mundo já não estavam às avessas. Tudo amanhecia como se já fosse tarde, mas o sol não desistia. Os carros passavam, indiferentes, como sempre passam. As pessoas situavam-se indiferentes umas às outras, como se as demais nem sequer existissem. Era neste ensimesmar que o caderno de notas perdia uma página em branco à medida que ela era povoada por umas palavras avulsas que saíam da caneta, como se o pensamento se compusesse na lombada que recebe o dia.

Se os corpos não fossem os vultos que parecem, dir-se-ia que vinham ornamentados por felicidade. “Felicidade”; o que é a felicidade? A pergunta tinha de ser reformulada: o que era a felicidade? Ou ainda: faz sentido a interrogação? Nesta cisma, enquanto a empregada de mesa continuava a servir os clientes, andando de trás para a frente e da frente para trás, notou no cisma do pensamento: a felicidade era apenas um conceito. Se houvesse alguém que protestasse, esgrimindo a ideia de que a felicidade se materializa, desafiá-lo-ia a apresentar provas materiais deste argumento.

Agora os unicórnios estão na moda – alguém dizia na mesa do lado. É como sempre: a debandada geral, como se todos fôssemos traduzidos para um refúgio de papel onde as coisas se adestram no seu fingimento. Precisamos de unicórnios para fazer de conta que o que está lá fora é um mundo perdido. Possivelmente, perdido para a angústia que nos avaliza no desassossego permanente do sono. Debaixo das pedras, agarra-se todo o lodo que descapitaliza os sentidos: os ódios, imorredoiras consumições de tempo, desperdício da pele que com eles se tatua; os sobressaltos instruídos gratuitamente, sem palco para o serem; os lugares que se acharam perdidos no tempo, sem mapa para serem inventariados; as palavras arrependidas – e o vazio em se debatem os arrependimentos.

Os unicórnios são os procuradores da banalidade. Como se estivéssemos em dezembro e à tarde estivessem vinte e cinco graus centígrados e gotas de chuva tropical desabençoassem as paredes lívidas que seguram o tempo. Em défice de esperança, as pessoas estavam capazes de avançar pelas lixeiras só para encontrar o seu pessoal unicórnio. Fazendo lembrar Cash, quando compôs uma música sobre o seu Jesus pessoal.

6.1.22

Os muros que não há

Zero 7 ft. Sophie Barker, “Waiting Line” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=MydFq0io-tQ

As tesouras terçam-se no céu, desenham a aurora que se desprende da lassidão. O desfiladeiro esconde o murmurar do rio que, nas suas funduras, o fende. O silêncio matinal é o refúgio estandarte. Como se não fosse preciso dar uso às palavras.

A claridade toma conta do horizonte, a pulso. Uma dádiva – diz-se. Poucos acompanham a aurora, todavia. Parece que está na moda ser-se noctívago. Pode ser que alguns noctívagos, mais tardios, ainda vão a tempo de apanhar o dealbar do dia enquanto terminam o seu dia. Enlaçam-se à alvorada cantante, nela bebendo o néctar que augura um sono bem dormido. 

O desfiladeiro esconde precipícios mortais enquanto o crepúsculo dita a sua lei. A natureza tem destes sortilégios: funde, num só, a beleza e a morte. Como se fosse a metáfora autêntica da existência. Pois no desfiladeiro encerram-se os muros que são arremessados contra as improbabilidades que se tecem ao longo da vida. Não são muros, no que os muros representam de embaraço; são muros enquanto desafio, cingindo os limites das oportunidades que se pressagiam na urdidura do tempo.

Às vezes, despenhamo-nos e experimentamos a dor de um precipício. Às vezes, precisamos de um precipício. Como aprendizagem; ou como esteio que garante as medidas dos sentidos – pois, às vezes, a rotineira andança pelos caminhos do mundo transpõe um abalo telúrico que é um estremecimento catatónico. Os muros que se divisam na escala métrica do olhar não passam pelo crivo da escotilha. São imagens furtivas, construções que dimanam do pensamento irrefreável, do pensamento que se subleva contra a indiferença. Imagens, apenas imaginadas. Sonhos. Às vezes, pesadelos.

Quando o precipício se revela e as dores consomem o corpo, olha-se para o alto e demanda-se pelo oposto do precipício que encima o desfiladeiro. Não é aquele o lugar da pertença; é um desvio, episódico, um – como se diz? – acidente de percurso que exige remédio. A saída do precipício é um caminho assotado. Não é suficiente para a capitulação. A alternativa é vegetar nas funduras do precipício, acompanhado da solidão e da promessa de morte. 

Quanto a esta, não tem serventia a sua antecipação.

5.1.22

Inverneira das almas

Einsturzende Neubauten, “Stella Maris” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=kTxoYzqy8lE

As tempestades assaltam a curadoria das almas. Se não se precatam, a erosão apodera-se delas e serão como rochas desprotegidas a receberem toda a pujança das marés expostas à fúria das borrascas. Serão consumidas na fervura ácida das marés, até os esqueletos não passarem de fantasmas furtivos.

As almas precisam de refúgio. Pelo menos durante a invernia que as desacautela. Precisam de encontrar uma inverneira que as faça descer dos tentáculos das tempestades. Uma espécie de exílio, temporário. Para saberem que não têm olhos intrusos a esquadrinhar os seus meandros, como se alguém lhes tivesse encomendado a empreitada do julgamento das almas alheias. Para não serem testemunhas do indisfarçável regozijo dos próceres de aleivosias várias, que passeiam a sua prosápia medida pelas sinecuras que o estatuto lhes diz conferir. 

Ao menos, na inverneira das almas, o fingimento é cautelar. Elas entram num labirinto à prova de balas. Uma vez isoladas, dedicam-se à sua própria sindicância. Sem intromissões ou degraus caucionados por imprevidentes fautores de causas nos outros. As almas deviam saber que não são objeto de observação exterior. Só elas se podem sindicar. Só prestam contas a si mesmas. Apenas o podem fazer quando os elementos exteriores, em sua convulsão, são isolados da equação. Elas são o seu próprio fruto sumarento. Não podem ser colhidas por outros.

É nas inverneiras que as almas se distinguem umas das outras. Às que não chegam a tempo do refúgio ajuramentado fica o sobressalto contínuo, um feixe de vultos que as tomam de assalto, exaurindo-as da sua identidade. Os efeitos de uma tempestade de Inverno podem ser devastadores. As feridas abertas podem ser irrecuperáveis. Diz-se que as almas precisam deste tirocínio para, calejadas, serem resistentes às contrariedades. As inverneiras das almas provam o contrário. É na serenidade do lugar onde se refugiam que cultivam a lucidez para saberem domar as contrariedades. 

Quando a invernia desiste de comparecer, as almas dizem adeus temporário às inverneiras que as acolheram e sobem aos promontórios. Estão preparadas para serem, outra vez, a atalaia do mundo.

4.1.22

A dinastia cipriota

Club Makumba, “Migratória”, in https://www.youtube.com/watch?v=CZkrVyILOYA

A coabitação de diferentes é uma empreitada nem sempre admissível. Se são as diferenças que somam à superfície, e se os que coabitam preferem exacerbar as diferenças, a coabitação pode ser uma caixa de Pandora. Às vezes, as armas são terçadas e a demência do sangue derramado é o idioma que sobra.

Os otimistas, sempre dispostos a desmentir a face negra que tempera a humanidade, oferecem a solução do condomínio. As diferenças não podem ser um embaraço se a coabitação é indeclinável. Não seja considerada a hipótese beligerante de um dos coabitantes querer exercer monopólio sobre o domínio, expulsando o outro coabitante por meios violentos. Fora esta hipótese – que deixa patente o lado sombrio que se empresta ao pessimismo antropológico – a coabitação exige meios de tolerância, um roteiro de concessões para que um equilíbrio mínimo seja aceitável entre os coabitantes. 

Não se exige a diluição das diferenças. São as diferenças que oferecem o cunho da identidade aos coabitantes. O que se exige é que as diferenças não sejam a desintermediação da convivência pacífica, de um módico de tolerância, do respeito mútuo. As diferenças não podem ser desembainhadas como um trunfo que afirma a superioridade de um em relação ao outro. As diferenças são o que são: diferenças. Não se pede que as idiossincrasias desapareçam da cartografia da identidade de cada coabitante. Para seu próprio conforto, impõe-se um quadro mental predisposto à convivência sem atritos. Pois o chão que habitam não é diferente por serem diferentes as suas identidades. Nem os frutos colhidos têm diferente linhagem apenas porque são colhidos num dos lados onde os diferentes coabitam.

Os que acreditam na bondade da espécie como último reduto que se sobrepõe à sua capacidade de beligerância propõem a federação de interesses que exceda os antagonismos. A lógica das concessões é essa aritmética. Não se espera que os coabitantes sejam os melhores amigos. Apenas se espera que finjam que as diferenças deixam de ser o fermento da beligerância. Um fingimento bondoso, em nome do conforto dos coabitantes. 

A dinastia cipriota é o rudimento da convivência em condomínio. As desinteligências podem não chegar à altitude dos antagonismos entre os coabitantes cipriotas. Mas ninguém muda de casa por não suportar o vizinho do segundo direito. Nem faz a vida negra ao vizinho do segundo direito à espera que ele mude de casa.

3.1.22

Trilogia

Dry Cleaning, “Viking Hair” (live at WFUV), in https://www.youtube.com/watch?v=nT4xa9gu3Gw

*

Não é preciso puxar o filme atrás. A memória aviva-se na cal pura que é atirada para as mãos desprotegidas. Ela sabia. Preferia fingir. Aturava as circunstâncias, quando elas eram um fundo poço sem vista para a claridade. E, todavia, perseverava. Olhava para o periscópio como a panaceia contra os males admitidos a concurso. O mundo era um lugar injusto. Admitia muitos males a concurso. E não havia quem escrutinasse essa entrada no concurso. À noite, encomendava o sono contra os sobressaltos. Podia ser que a manhã seguinte fosse a rendição de todos os males, possivelmente dissolvidos num sono justo.

**

            As nuvens tingiam o céu, escondendo o sol (que nem tímido podia ser). Se essa fosse a medida, os males inventariados estariam quase a comparecer no atlas do tempo. A incerteza esvoaçava, insinuando-se entre os galhos despidos das árvores. O ardina reformado tomava o café, lendo os jornais. Não se intimidava com os infortúnios amealhados, nem a angústia jurava pedestal à medida que o homem olhava para o tempo por diante. O ruído estridente de um autocarro a precisar de mudança de peças lembrava que os corpos se adoentam. De vez em quando, os dedos tremeluziam sob o sol que enganava o Inverno. Era o seu consolo. O ardina reformado fazia parte da maioria que se insurge contra o Inverno quando o Inverno esconde o sol nas nuvens que tingem o céu.

***

            Pela noite fora, os estroinas não desistiam da música tonitruante. O ritmo lisérgico combinava com o demais. Não falavam. Abanavam os corpos, desajeitadamente. Os olhares eram rituais – e eles entendiam-se na fala dos olhares congeminados. Um dia, alguém lhes perguntou se sabiam o que era a sedução. A palavra não integrava o seu vocabulário de intenções. Os olhares eram titulares. Os corpos eram materiais de construção. Não lhes dissessem que o hedonismo tinha de ser proscrito, que teriam de ir à procura do exílio. Não havia dinheiro que comprasse a boémia de volta. Eles foram as principais vítimas das quarentenas forçadas. No seu próprio juízo, que consideravam imparcial. Não era preciso puxar o filme atrás.