28.1.22

Projetos de vida: atravessar a Ponte da Arrábida a pé (ou como o óbvio se escapa como o vento entre os dedos)


Beirut, “O Leãozinho” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=RHd4vzekLX4

Se fizesse um inventário das vezes que atravessei a Ponte da Arrábida de carro, seria um número com quatro dígitos. E, todavia, nunca a atravessei a pé – logo eu que, em adolescente, na companhia de uns amigos, escalei o arco da ponte clandestinamente, antes de a empreitada se ter tornado uma atividade radical anos mais tarde. Pelo que vejo, muitos turistas levam avanço sobre mim. Conhecem da minha cidade algo que do conhecimento não habita em mim.

Outros exemplos se podiam arregimentar, provando que somos forasteiros na nossa própria cidade. Precisei de esperar trinta e sete anos para subir à Torre dos Clérigos. Nunca fui à abóbada do Palácio de Cristal. Nunca subi ao que, durante muito tempo, foi conhecido como o edifício que coincidia com o marco geodésico da cidade (o Hotel Portucale). Nunca fui ao palácio árabe do Palácio da Bolsa. Nunca fui ao Jardim Botânico. Mas já fui a Moscovo, Reiquiavique, Seicheles, Valparaíso (no Chile), Capadócia, ou Edmonton (no Canadá).

As pessoas que viajam muito orgulham-se do muito que conhecem. Emprestam um sentido cosmopolita à sua vivência. Pode-se dizer, dos que trotam mundos, que acrescentam sucessivas camadas de cultura à sua mundividência. E, no entanto, são forasteiros nas suas próprias terras, com a agravante de desconhecerem essa condição. Um escritor (de que não me recordo o nome) protestava contra este paradoxo: é insensato que as pessoas partam em demanda de novos e longínquos lugares se ainda não conhecem o lugar onde nasceram, ou o lugar onde escolheram viver, como as suas próprias mãos.

Como estes tempos parecem trazer do passado o ensimesmar nacional – ao que se acrescentam, em alguns casos, acérrimos defensores de paraísos regionais e até locais –, uma certa misantropia geográfica voltou a estar na moda, mobilizando-se contra as facilidades de viajar. As pessoas desaprovam a possibilidade de trazerem ao seu conhecimento o conhecimento de novos lugares. Dispensam o embeber em novas culturas, talvez por mera ignorância, talvez por recearem que a exposição a novas culturas possa adulterar aquela que dizem ser a sua identidade. 

Se for necessário escolher entre duas extremidades (um cosmopolitismo militante que convive com um limitado conhecimento da cidade nativa; ou o mergulho na idiossincrasia local sem dar espaço ao estrangeiro), prefiro ser um cosmopolita que admite não conhecer o óbvio da sua própria cidade. Enraízo mais conhecimento com o conhecimento que o desconhecido me traz do que esquadrinhar o chão familiar ao milímetro. Mesmo que o preço a pagar seja sentir que o óbvio se escapa entre os dedos.

À Ponte da Arrábida, esta mnemónica: posso atravessar-te a pé, a qualquer momento.  

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