O cão não suportava vozes aos gritos. Do aulido concluía tratar-se de gente em desavença e o cão nascera com a impressão digital do pacifismo. Não aprendera nada da vida. Já fora maltratado um punhado de vezes (por uns ganapos imersos na adolescência irrefreavelmente beócia; por um psicopata com cabeça a prémio pelo manicómio de onde fugiu; por uma peixeira que acordara com as águas poluídas). Confiante na bondade humana, não deixava de mendigar afetos aos humanos que por ele passavam na rua. Era um otimista incorrigível, o cão. Acreditava mais na espécie humana do que a maioria dos humanos.
Quando estava nas imediações de uma altercação e notava as vozes que se punham insuportavelmente ruidosas, o cão desatava a correr às arrecuas. Latia com lampejos de desespero, como se o conflito de onde sobravam vozes alteradas fosse uma admoestação ao cão por ser vadio. Não era por isso. O cão limitava-se a fugir o mais depressa que podia para um lugar de onde não se ouvissem as vozes transtornadas. Desorientado, o cão corria do avesso. Mostrando aos humanos que a beligerância não é o seu estado natural. De tanto querer ensinar os humanos, o cão não se apercebia como estava errado.
Um dia, numa desalmada fuga que deixou atónitos os transeuntes que testemunharam a correria às arrecuas, o cão esbarrou num homem. Dir-se-ia que o homem ia distraído e não notou os comentários espantados de quem via o cão a correr para trás. O embate deixou o cão aturdido, quase a desmaiar. O homem arrependeu-se da distração inamovível. Já lhe acontecera pior: atravessar ruas com o semáforo vermelho para os peões, atirar o café para o lixo enquanto abria a saqueta do açúcar, esquecer-se do troco em estabelecimentos comerciais. Sair à rua com a braguilha aberta era o habitual.
Desta vez, o homem tinha de ser ilibado. A surdez evitou que desse atenção ao burburinho que se gerara por causa do cão desaustinado que corria do avesso. Desatento, deu-se a coincidência de dobrar a esquina no momento em que o cão, vindo do lado contrário, fez o mesmo. O homem, afamado DJ (por causa da surdez) ficou enervado. Podia ter ferido o cão. Mas o cão recuperou o norte ao fim de alguns segundos, ficando inerte aos pés do DJ surdo. Alguém disse ao DJ surdo (sem saber da sua surdez; mas ele conseguia ler os lábios) que o cão detestava ruído exacerbado.
O DJ surdo teve imediata empatia com o cão. Custou-lhe ver o cão quase inanimado por ter esbarrado nele. Não ficou indiferente ao cão aninhado a seus pés. E pensou no futuro: se o cão era sensível ao ruído e ele, surdo, podia morrer por não dar conta de um ruído ameaçador, melhor seria que acolhesse o cão em casa e o trouxesse de cada vez que saísse à rua.
E assim o cão que corria do avesso passou a ser o cão-guia do DJ surdo.
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