O chão não se mede em viveiros. Ninguém era dono do seu chão se os coletivistas tivessem vingado. Seríamos, num certo sentido, apátridas. Pois o chão que nos cabe em sorte é um módico de identidade. Dirão: há quem seja apátrida por opção, gente que não quer tanger as graças da propriedade. Não serão apátridas como os que seriam esbulhados do seu património por ação de uma ideologia consagrada como sucedâneo de religião estadual. Não são apátridas por coerção. Seu é outro património, imaterial. Um património que não é comparável com ninguém, pois é representado por sensações e fragmentos de memórias e de pessoas. Um património sem valor. E, por isso mesmo, o património mais valioso. O chão de que dizemos ser parte de uma pertença é um chão que se acolhe sob os nossos pés. Hoje é este, mas amanhã pode ser outro. A itinerância liquida os vínculos. O chão reduz-se à sua materialidade. Tem um preço, que varia com os humores dos mercados, mas é um preço volátil: depende mais da avaliação dos outros do que da avaliação do próprio. Não comporta sensações e fragmentos de memórias e de pessoas que emprestam um valor inestimável a esse chão. Às vezes, as pessoas desprendem-se das sensações e fragmentos de memórias e de pessoas quando mudam de lugar. Podem transportá-los consigo, mas desanexam-nos do chão que lhes deu origem. É um património indelével. Um sarcófago que acumula sensações e fragmentos de memórias e de pessoas que são inventariados pelos diferentes titulares que se sucedem na propriedade do espaço. Esta atomização pulveriza as sensações e fragmentos de memórias e de pessoas embebidos num chão qualquer. Diminuindo-lhe o valor patrimonial. Os mercados não são confiáveis na atribuição do valor a um chão. Eles ignoram os elementos imateriais que são a caução de um chão.
12.1.22
Património restante (short stories #372)
Alt-J, “Hard Drive Gold”, in https://www.youtube.com/watch?v=_7-r0KON9GI
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