6.1.22

Os muros que não há

Zero 7 ft. Sophie Barker, “Waiting Line” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=MydFq0io-tQ

As tesouras terçam-se no céu, desenham a aurora que se desprende da lassidão. O desfiladeiro esconde o murmurar do rio que, nas suas funduras, o fende. O silêncio matinal é o refúgio estandarte. Como se não fosse preciso dar uso às palavras.

A claridade toma conta do horizonte, a pulso. Uma dádiva – diz-se. Poucos acompanham a aurora, todavia. Parece que está na moda ser-se noctívago. Pode ser que alguns noctívagos, mais tardios, ainda vão a tempo de apanhar o dealbar do dia enquanto terminam o seu dia. Enlaçam-se à alvorada cantante, nela bebendo o néctar que augura um sono bem dormido. 

O desfiladeiro esconde precipícios mortais enquanto o crepúsculo dita a sua lei. A natureza tem destes sortilégios: funde, num só, a beleza e a morte. Como se fosse a metáfora autêntica da existência. Pois no desfiladeiro encerram-se os muros que são arremessados contra as improbabilidades que se tecem ao longo da vida. Não são muros, no que os muros representam de embaraço; são muros enquanto desafio, cingindo os limites das oportunidades que se pressagiam na urdidura do tempo.

Às vezes, despenhamo-nos e experimentamos a dor de um precipício. Às vezes, precisamos de um precipício. Como aprendizagem; ou como esteio que garante as medidas dos sentidos – pois, às vezes, a rotineira andança pelos caminhos do mundo transpõe um abalo telúrico que é um estremecimento catatónico. Os muros que se divisam na escala métrica do olhar não passam pelo crivo da escotilha. São imagens furtivas, construções que dimanam do pensamento irrefreável, do pensamento que se subleva contra a indiferença. Imagens, apenas imaginadas. Sonhos. Às vezes, pesadelos.

Quando o precipício se revela e as dores consomem o corpo, olha-se para o alto e demanda-se pelo oposto do precipício que encima o desfiladeiro. Não é aquele o lugar da pertença; é um desvio, episódico, um – como se diz? – acidente de percurso que exige remédio. A saída do precipício é um caminho assotado. Não é suficiente para a capitulação. A alternativa é vegetar nas funduras do precipício, acompanhado da solidão e da promessa de morte. 

Quanto a esta, não tem serventia a sua antecipação.

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