24.1.22

Antologia (em Istambul também neva)

Yard Act, “The Overload”, in https://www.youtube.com/watch?v=tQ2ANR_vF2E

Parecia que o estuário tinha sido preparado para eles. Esperavam pelo entardecer. Por um lugar-comum: 

- Aqui o ocaso deve ser esplêndido. 

Ele não quis discordar (sem ter motivos para concordar). Ela tomou o silêncio como anuência. Foi em silêncio que os minutos seguintes foram percorridos. Ou melhor: ela fazia do silêncio a fala interior que costurava as bainhas dos pensamentos avulsos que pareciam ter sido paridos em demanda de moldura extravagante, precisamente a que se adiantava aos seus olhos; e ele, absorto, como se a superfície do copo de vinho alojasse uma quimera e até fosse mais importante do que o vinho (que tinha sido escolhido a dedo por ele).

- O sol que desmaia não é um ocaso. Amanhã o dia renovado cuidará de o confirmar. O sol que desmaia é uma jura. Do dia que terá vencimento assim que o sol o trouxer às costas, derrotando a penumbra. 

Outro lugar-comum – pensou ele, interrompendo a mudez que só o tartamudear da cidade, quase a ficar cansada, interrompia. Não havia mal: quem não fosse refém dos lugares-comuns, mesmo daqueles que não são reconhecidos como tal, que ostentasse a distinção da originalidade. Não havia mal: as palavras foram ditas com ecos de poética. 

Ela continuava a insistir em derrotar o silêncio instalado:

- Se fosses desafiado a fazer uma antologia da tua vida, uma síntese que não ocupasse mais do que cem palavras, estavas preparado para responder?

Impávido, com o sol desmaiado a tomar conta do olhar, não ignorou a demanda. Acenou com a mão que estava livre, como que diz “preciso de algum tempo para pensar no assunto.” Não era cómodo deitar contas à vida para selecionar acontecimentos que constituíssem uma antologia. Alguns seriam inconfessáveis, porque uma antologia não se compõe apenas de proezas ou de momentos que ficam emoldurados na memória em forma de autorecompensa. O maior embaraço era ter de olhar em retrospetiva. Por vezes, era acusado de esquecimento seletivo. Ele contrapunha tratar-se de uma intencionalidade metódica: o passado era uma usura quando as suas sombras se deitavam no mapa do presente – era como se o passado colonizasse o tempo vivo e insurgia-se contra este lado totalitário das reminiscências. Ela aguardava. Sabia que ele não era leviano e não ia dar uma resposta gratuita, apenas com o propósito de não deixar deserto o desafio que fora feito. 

O silêncio mantinha-se, desta vez acompanhado por uma coreografia do corpo que revelava desconforto. Não estava a conseguir ligar-se ao pretérito. Era como a linha do horizonte fosse uma barragem que impedia o tempo passado de voltar a ser altar. Não percebia o exercício para que fora desafiado. Seria um jogo? Estaria ela à espera de ser desafiada de volta e, com isso, era como se estivesse a pedir para que fosse ela a revelar, em primeira mão, a sua primogénita antologia? As hipóteses atropelavam-se, fundidas com a amálgama interior que se tinha apoderado dele. 

Socorreu-se do telemóvel, ainda em silêncio. Podia ser que ela entendesse que não queria, ou não podia, corresponder ao desafio. Na página onde habitualmente atualizava as notícias frescas, uma fotografia de um nevão em Istambul serviu de mote:

- Como vês, também neva em Istambul.

E ela, entusiasmada por fenómenos atmosféricos irregulares e por fotografia artística, agarrou no telemóvel e desfiou as fotografias que ilustravam a notícia. 

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