As duas metades do mundo já não estavam às avessas. Tudo amanhecia como se já fosse tarde, mas o sol não desistia. Os carros passavam, indiferentes, como sempre passam. As pessoas situavam-se indiferentes umas às outras, como se as demais nem sequer existissem. Era neste ensimesmar que o caderno de notas perdia uma página em branco à medida que ela era povoada por umas palavras avulsas que saíam da caneta, como se o pensamento se compusesse na lombada que recebe o dia.
Se os corpos não fossem os vultos que parecem, dir-se-ia que vinham ornamentados por felicidade. “Felicidade”; o que é a felicidade? A pergunta tinha de ser reformulada: o que era a felicidade? Ou ainda: faz sentido a interrogação? Nesta cisma, enquanto a empregada de mesa continuava a servir os clientes, andando de trás para a frente e da frente para trás, notou no cisma do pensamento: a felicidade era apenas um conceito. Se houvesse alguém que protestasse, esgrimindo a ideia de que a felicidade se materializa, desafiá-lo-ia a apresentar provas materiais deste argumento.
Agora os unicórnios estão na moda – alguém dizia na mesa do lado. É como sempre: a debandada geral, como se todos fôssemos traduzidos para um refúgio de papel onde as coisas se adestram no seu fingimento. Precisamos de unicórnios para fazer de conta que o que está lá fora é um mundo perdido. Possivelmente, perdido para a angústia que nos avaliza no desassossego permanente do sono. Debaixo das pedras, agarra-se todo o lodo que descapitaliza os sentidos: os ódios, imorredoiras consumições de tempo, desperdício da pele que com eles se tatua; os sobressaltos instruídos gratuitamente, sem palco para o serem; os lugares que se acharam perdidos no tempo, sem mapa para serem inventariados; as palavras arrependidas – e o vazio em se debatem os arrependimentos.
Os unicórnios são os procuradores da banalidade. Como se estivéssemos em dezembro e à tarde estivessem vinte e cinco graus centígrados e gotas de chuva tropical desabençoassem as paredes lívidas que seguram o tempo. Em défice de esperança, as pessoas estavam capazes de avançar pelas lixeiras só para encontrar o seu pessoal unicórnio. Fazendo lembrar Cash, quando compôs uma música sobre o seu Jesus pessoal.
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