Quantas são as noites indeléveis que se sublevam contra os sentidos? Quantas são as palavras embaciadas que ficam à boca da boca e que ficaram por dizer por medo da ousadia? Quantas vezes foram vãos os desejos armadilhados? Quantos adiamentos pesam sobre o dorso dos meãos? Quanta é a distância que falta até sermos diamantes?
De passagem, um autocarro a precisar de restauro. Era o elemento mais ruidoso da cidade tonitruante. Ali ao lado, um ferro velho dedicava-se a empalhar carcaças de carros sem serventia, mas não conseguia ser mais ruidoso do que o autocarro quase sucata. O autocarro tinha como destino a Viela do Poço Negro. Olhou para os passageiros e sentiu comiseração por eles: “quem apanha um autocarro para a Viela do Poço Negro?” (“Pior, só o autocarro que vai para o Desterro.”)
Não podia prever os passos seguintes das vidas que compunham os passageiros. Se a memória não o atraiçoava, ainda havia uma dúzia de paragens até à Viela do Poço Negro. Talvez alguns passageiros saíssem antes. Estariam a salvo? E a salvo de quê? Ele nunca fora à Viela do Poço Negro. O preconceito abatia-se. Um poço negro não é necessariamente o selo de um lugar soez. Muitas vezes, os nomes são apenas metáforas dos lugares a que dão nome.
Apanhou o autocarro seguinte para a Viela do Poço Negro. Iria até ao fim do percurso, sem sair numa das paragens que distavam até à Viela do Poço Negro. Devolveu a si mesmo o opróbrio que encomendara, gratuitamente, aos passageiros do autocarro antecedente. Ele ia para a Viela do Poço Negro e isso não dizia nada sobre a sua pessoa. Mesmo que a Viela do Poço Negro fosse um lugar ermo, sem pergaminhos para a morada de pessoas, que ninguém fosse mesquinho e agrilhoasse ao lugar uma têmpera desrecomendável.
Não são os lugares que se desrecomendam. São as pessoas. Estava quase a materializar a convicção, antes de desembarcar na Viela do Poço Negro. Quando o autocarro terminou a viagem, ele era o último passageiro. Perguntou ao motorista se era habitual o autocarro terminar a viagem na Viela do Poço Negro sem passageiros. O motorista, atónito, pôs de lado o jornal e respondeu: “o senhor não sabe o que são acasos?”
E ele insistiu, nos seus pensamentos herméticos: as pessoas é que são desrecomendáveis.
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