A portaria da biblioteca escondia os fundos onde se postergam as memórias. As crianças brincavam como sempre o fazem, como se a sua pueril condição não tivesse a ver com as contrariedades que descompuseram os tempos recentes. Notava-se, nos rostos das pessoas, o desassombro da reinvenção da vida. Tinham estado sitiadas tempo de mais. Queriam ser elas a tutelar as vidas de que eram intérpretes, sem peias.
As esplanadas eram o viveiro destes tempos resgatados ao pretérito que antecedera os tempos de chumbo. As pessoas demoravam-se nas esplanadas, mesmo que as nuvens pesadas colonizassem o sol e o frio entanguecesse os corpos. Resistiam. Simbolicamente, resistiam. Jogavam-se contra o passado ainda fresco e a sua conspiração contra a liberdade.
O mar deixara de ser um lugar proibido. Como se os areais estivessem contaminados por uma matéria tóxica e as pessoas impedidas de saberem os sortilégios do mar. Agora era diferente – agora era como dantes (o que fora diferente foram os tempos de chumbo com as nossas jugulares sob o jugo de um fantasma encolerizado). As pessoas queriam voltar a aprender a textura da areia, queriam marcar encontro com o salitre do mar e o limo que cobria as rochas mais próximas do vai e vem das marés. A maresia compunha outros estados de alma, à medida que o esquecimento se levantava no dorso de uma maré a favor. Aproveitavam-se da efemeridade das marés para comporem os versos futuros das suas vidas.
Os corpos, dantes vedados uns aos outros, eram convidados mútuos na mais pura dimensão da humanidade. As pessoas já não tinham medo dos poemas, perdendo da memória os meses de tumulto que se encaixavam uns nos outros, numa saga que parecia interminável. Terçavam os olhares já despidos do medo. Iam ao mais fundo de si para trespassarem as algemas que foram alojamento involuntário, hibernando a sua liberdade.
Nesta medição do sangue convalescido, o esquecimento era um compêndio centrípeto. Uma vez aberto, o compêndio era um imprevisto livro composto por páginas em branco, à espera de serem ocupadas pelas regras apostas pelos autores arrematados. O esquecimento prometia apenas um lugar diferente do passado ainda em fresca memória. Prometia que o porvir seria o que o acaso quisesse trazer até às areias molhadas pela maré mais recente. E as pessoas selavam o contrato com o esquecimento, emprestando o seu ouro às páginas entretanto ocupadas do manual. Fazendo do esquecimento a prova de vida da memória. Trazendo o esquecimento como renovação perpétua do tempo em espera.
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