(Recordatória de contextualização: em terra de marinheiros e de muito mar, costas há muitas)
Andemos com o relógio às arrecuas. Na reinvenção do tempo já imortalizado, finjamos que se pode mexer na História. Partimos no avesso do tempo, desconstruindo as suas marcas. Como aval do exercício, um dote especulativo: a função termina com um avatar das possíveis silhuetas do tempo pretérito, agora reinventado pelos nossos dedos não sortílegos.
Ato 1 – O Sr. Costa não foi mandrião nos estudos e perseverou uma bolsa de estudo para os estudos superiores. Perante a desconfiança metódica do pai, que não passou da instrução primária (como mandam os cânones do enredo). Não deu seguimento ao negócio da família, acabando o pai, caduco e pressentindo o fantasma da morte, por vender o estabelecimento comercial a um indiano que andava pelo Martim Moniz.
Ato 2 – O Sr. Costa não cursou Direito, como quase todos os que, na altura em que fez o tirocínio universitário, não iam para Engenharia ou para Letras. Entrou numa especialização recente, as Ciências Económicas. O pai criticou-o, asperamente. Pois isso das ciências económicas não se distinguia dos marçanos que cuidam da contabilidade dos pequenos negócios. “Se queres ser manga de alpaca quando podias ser dono do teu negócio, é coisa que me hás de explicar em devido tempo”, atirou, encolerizado e angustiado, o pai do Sr. Costa.
Ato 3 – O Sr. Costa não formou família com a prometida para a boda, depois de largo período de cortejo. À última da hora, caiu de amores por uma colega de Germânicas que tinha um corpo escultural e – dizia-se, à boca pequena – outros dotes inconfessáveis (por isso só se ventilavam à boca pequena).
Ato 4 – O Sr. Costa adestrou-se na arte do gualdipério. Fartava-se depressa das pessoas. E dos empregos, porque neles havia pessoas. Passou por muitos empregos em pouco tempo, contrariando as esperanças do pai, que o aconselhava enfaticamente a entrar para a função pública “por causa da segurança que te dá”, “já que não queres seguir o negócio da mercearia.”
Ato 5 – O Sr. Costa foi dos primeiros da geração e emigrar. Antecipou o início de uma guerra espúria que contrariava os movimentos de autodeterminação nas colónias ainda orgulhosamente empunhadas pelo tirano. Fez carreira no estrangeiro, pese embora o pouco à-vontade com idiomas não pátrios. Desde cedo a vocação para as relações públicas de si mesmo vieram à superfície. O Sr. Costa era exímio a cuidar da sua vidinha, nem que fosse preciso atropelar uns quantos que se amontoavam no caminho.
Ato 6 – O Sr. Costa regressou à pátria já era cinquentenário. Formara família com uma mulher de nacionalidade estrangeira, de quem se divorciou quando ela manifestou oposição a viver na pátria do marido. A descendência espalhou-se pelas quatro partidas do mundo, num cosmopolitismo verberado pelo Sr. Costa.
Ato 7 – O Sr. Costa, que era de ideias feitas, encasquetou que viria a ser nome reconhecido no meio dos negócios. Homem em contínuo concubinato com a sorte, investiu as poupanças na bolsa de valores antes de uma súbita explosão dos ditos cujos. Ganhou uma fortuna. E acesso aos lugares de acesso restrito, onde só os grandes magnatas, políticos amantes de vícios burgueses e arrivistas de carteira recheada marcavam presença.
Ato 8 – O nome do Sr. Costa constava do erário público em vésperas da sua reforma. Recusava teimosamente a reforma. Não queria que a reforma inaugurasse a pessoal decadência. Como tinha um império para gerir e uma imensa coorte nas imediações, não podia dar o flanco. Não lhe falassem da reforma. A morte, quando viesse, cuidaria da reforma, inapelavelmente.
Ato 9 – O Sr. Costa queria o seu nome emoldurado na toponímia da cidade capital para a eternidade. Moveu influências e conseguiu que, por interposta pessoa, fosse encomendada escultura sua a ser inaugurada quando o seu nome viesse substituir o nome até então exibido na rua (um poeta qualquer do século XVIII, que só um punhado de eruditos conhecia).
Ato 10 – No dia da inauguração, a estátua estava impecável, os discursos de ocasião soaram a elegia a destempo (mas o Sr. Costa não se importou) e a populaça saiu à rua para a irrecusável genuflexão. À noite, o Sr. Costa estava ufano que nem um nababo.
Ato 11 – O Sr. Costa já podia morrer em paz. Assim como assim, a mercearia que fora do seu pai, e que comprara ao paquistanês que a havia adquirido ao indiano, estabelecera sucursais por todo o país e até no país vizinho. O Sr. Costa não se cansava de dizer em público que singrou na vida a pulso e só com o produto do seu esforço. Era um mestre na injúria do passado, perito no recondicionamento do seu lastro como se fosse um estalinista da pior cepa. Nos momentos de introspeção, nunca lhe ocorreu supor se o pai estaria orgulhoso das ramificações do negócio caso fosse chamado de volta à terra dos vivos.
Ato 12 – Hoje, octogenário e, todavia, ainda tutor de uma energia singular, sonha acordado com os termos da elegia e com o endosso da incumbência a uma personalidade de reconhecida consensualidade. Um herói merece as loas terminais da boca de um herói ainda maior. Uma vida maior não pode ter despedida que não seja se não a preceito. Ainda hoje acredita num esoterismo insólito: uma vida perpetua-se para além da sua morte se poder ficar selada na toponímia de uma cidade que se veja no mapa.
Sem comentários:
Enviar um comentário