22.3.22

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Beach House, “Hurts to Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=N2N5ohmzo3k

Como pode uma pessoa inteira, em toda a sua riqueza sem medição, caber numa exígua moldura? 

E, contudo, quando nos pedem identificação é o que sobra das nossas pessoas, acantonadas a um rosto que enche a moldura que atesta, com os demais dados (agora biométricos), a identidade de que somos portadores. É como se o resto do corpo não contasse e todos nós não passássemos de um cortejo de rostos atravancados numa moldura impreparada para a diligência de cada um. De fora ficam a métrica do demais corpo, as cicatrizes tatuadas na pele, as rugas que tomaram posto, o mofo ou a janela arejada que são património incalculável dos corpos e das almas assim omitidos, todas as cortinas de fumo a que não interessa dar caução. 

Dirão: os organismos que inventariam as nossas identidades apenas querem uma amostra de nós. Não são exigentes; nós, descontentes com o resto do corpo e com a alma não reproduzível em fotografia que ficam fora da moldura, exigentes como somos, é que nos condoemos pela redução a uma moldura que, oxalá, fosse ao menos de quarenta por cinquenta. Em abono dos que se sublevam, não são tolerantes com o minimalismo que julgam ser uma contrafação de si mesmos e desejam ser mais do que a amostra a que são limitados. Acusam a irrelevância para que são atirados: cabem numa moldura exígua, como se este nanismo, aparentemente involuntário, não tivesse outro desenho hermenêutico.

Quando somos cuidados como uma amostra, uma grande parte de nós fica longe dos olhares bisbilhoteiros. Somos vítimas de um descuido de quem se eleva ao estatuto de nossa paternal figura e que, nessa medida, de nós devia cuidar. Para o autovoyeurismo já se capacitam as formas digitais de autopromoção, não é necessário que as autoridades exibam de nós o muito que fica escondido. Bem vistas todas as coisas, meter-nos numa pequena moldura não é dano maior. É um préstimo, talvez involuntário, de quem é geneticamente nosso invasor. Ficamos à mostra numa simples amostra do que somos. O resto guardamos em segredo, se essa for a exibição da nossa vontade.

A moldura que nos identifica extravasa os quarenta por cinquenta. A exiguidade a que somos reduzidos funciona como um seguro contra outros danos. De fora da moldura fica o que não tem tutela dos poderes: o genuíno eu que somos, sem curadoria a não ser a que cada um julgar apta. 

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