15.3.22

À prova de fogo

Holly Miranda, “Waves”, in https://www.youtube.com/watch?v=rja3fo1uIw4

Nas terras duras, as rugas são o pseudónimo das pessoas. Diz-se que estão vacinadas contra as contrariedades que se jogam na metáfora da insularidade em que as terras estão sitiadas. Antes do progresso, eram terras quase inacessíveis. Só para lá chegar era quase uma dobra do tempo, o que chegava para demover a viagem.

Os rostos impenetráveis escondem os sobressaltos de quem se atira de cernelha contra a geografia amotinada. Como se a sua carne fosse amassada com os punhos das serranias alcantiladas, naqueles lugares que continuam por desmatar. Às vezes, diz-se que essas pessoas são boçais. Desconfiadas. Pagam o preço dos apuros até terem sido feitas adultas. Retiram a palavra “apuros” do vocabulário. Os demais não são culpados. São as vítimas colaterais das contingências orquestradas no mapa onde aqueles rostos impenetráveis disfarçam emoções.

Eles precisam de um dique para conter os penhores preparados na matriz do tempo. Não sabem o que é um chão alcatifado, um quarto aquecido na irredutibilidade do Inverno, a caça fértil e sem embargos, ou as estações amenas (que saltam aquele lugar). A fala austera previne as palavras inférteis – as palavras que costumam desaguar em arrependimentos tão espúrios como o que lhes dá origem. Comparam-se às cabras montesas que desafiam a gravidade nas veredas impossivelmente alcantiladas, como se elas fossem os étimos dos embaraços que são a tela onde se retesam. 

Levam várias voltas de avanço sobre os demais, os que não conhecem, a não ser na teoria sem teor plausível, os verbos arrematados naquela geografia. É como comparar um imberbe com um homem rijo, o primeiro agasalhado ao menor volteio de uma nortada fresca e o segundo de peito aberto enquanto é lenhador em proveito da comunidade e os flocos de neve agridem os antebraços nus que se entregam à função.

Eles são à prova de fogo, à prova da água abundante que sulca os seus próprios desfiladeiros, à prova das neves traiçoeiramente belas. Os corpos endurecem à mercê do quadro incomplacente que é a sua morada. Esse é o chão que alberga os seus corpos. Não podem protestar. Não o podem amaldiçoar. Não conhecem outro.

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