30.3.22

Do sol embaciado

The Smile, “Skirting on the Surface”, in https://www.youtube.com/watch?v=_nmutqhuWFE

De cada vez que o sol perdia território para a bruma era como se um quinhão da soberania fosse roubado ao sol. O sol não se importava. Continuava a ser o suserano da sua própria criação. Não havia nada que embaraçasse o seu domínio.

Nos domínios terrenos, muitos dos mortais sentiam-se anestesiados pela cor baça que diminuía o sol. Contagiados pelo crepúsculo a destempo, ao corpo agarrava-se uma estranha forma de melancolia. Não eram preparos suficientes para prantos, ou para exageradas mortificações interiores (que esta era gente facilmente tomada por exageradas mortificações interiores). Admiravam a tonalidade desmaiada, levemente avermelhada, que tomava conta do céu, com o sol acanhado a adejar sobre os mortais como se estivesse mais longe do que era.

Alguém dizia, por estas alturas: 

Tenho inveja dos pilotos de avião. Mesmo em dia de tempestade, e ainda mais quando as nuvens ocupam o domínio do sol por dias a fio. Eles conseguem ver o sol todos os dias

Era a vingança do sol, só para uma casta que ficava mais perto do sol, deixando para os demais mortais o céu plúmbeo que descaracterizava o seu sorriso. Era como se definhassem durante os dias do sol escondido, condenados à clandestinidade, imputando a conspiração a demónios disfarçados de deuses que conseguiam trespassar o sol, nele semeando pesadas nuvens.

Havia dissidentes. Uns quantos mortais não protestavam contra a ausência do sol. Encontravam uma certa forma poética nos dias prostrados, na chuva que esbarrava contra as vidraças deixando-as cobertas com uma paleta de gordas gotas de água, no ocaso prematuro que encurtava os dias de inverno. Descobriam o encanto na ausência do sol – e não precisavam de agronómicos argumentos sobre a urgência da chuva para a satisfação das necessidades básicas.

Havia uma convergência entre os dois tipos de mortais, um lugar onde conseguiam consertar as díspares considerações sobre a epistemologia dos céus: era quando o sol se acobreava, tingido pela formidável recriação que uma fina camada de nuvens – ou, moda mais recente, poeiras importadas do deserto meridional – adstringia o sol. E este, nunca deixando de ser sumptuosa força genesíaca, aparecia amedrontado aos olhos dos mortais. 

Era quando uns e outros, desfazendo momentaneamente as divergências, sabiam que podiam ser testemunhas da fragilidade do sol. Para não se apoquentassem com as suas próprias fragilidades.

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