31.3.22

A véspera da mentira

PJ Harvey, “We Float”, in https://www.youtube.com/watch?v=pY8n7uYT0mM

Às vezes, as palavras podiam ser apenas metáforas. Se necessário, com legendas no rodapé da fala para os menos lúcidos perceberem que palavras assim ditas não se candidatam a uma interpretação literal. Podia ser que nem sempre o desvio-padrão entre o dito e o intuído fosse recebido à conta de uma mentira. Por vezes, quem prestas contas à mentira é quem entende como tal.

O que dizer na véspera de uma mentira? Depende dos dotes de adivinhação de quem dela será feito refém. Depende de saber se uma mentira existe antes de ser pronunciada, ou omitida. Os mal-entendidos são a cal puída que se verte sobre as palavras arrancadas ao silêncio, ou dele extraídas quando pertencem a um mapa cacofónico. Os puristas, que não são cúmplices dos mal-entendidos, mantêm que as palavras deviam ser como uma rua de sentido único. Não sabem o que é a literatura. Não sabem o poder superlativo de um texto que se embebe nas entrelinhas, um sublime exercício de inteligência do recetor (e de quem o criou). A literatura vive muito para além da mentira das palavras. Não vive sem elas, mas serve delas na safra de mentiras que distorcem o sentido banal das palavras.

As mentiras são mentiras. Ostracizam quem as comete. Piedosas ou impiedosas, congeminadas para proteger quem as recebe ou cominadas como agressão irreparável, as mentiras esbarram na sua contumácia. Quando se enovelam num labirinto, mentiras que acamam em sucessivas camadas, os mitómanos deixam de certificar a fronteira que distingue a mentira da sua antítese. Fica toda a gente amarrada a um empate técnico: os mitómanos mentem a si próprios e aqueles a quem a mentira atinge ficam sem saber se a mentira existiu.

Se ao menos as palavras não viessem sitiadas por metáforas, não se emprestavam ao agravo da mentira. Só que uma mentira pode existir sem palavras. As mentiras que medram em silêncios não são povoadas por metáforas ou outras figuras de estilo que sirvam para as disfarçar. Para as mentiras, também deviam existir contratos-promessa.

Na véspera da mentira, não existem mentiras. Só o dia consecutivo dirá se houve véspera de uma mentira. E se os atingidos ficaram feridos com gravidade, ou se a mentira foi misericordiosa. De acordo com os cínicos, ela só ganha espessura quando é conhecida de quem é sua vítima. Amanhã é o cais que escrutina a mentira. 

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