3.3.22

Os filmes que nunca vi

Ólafur Arnalds, “Fystra (Living Room Sessions)”, in https://www.youtube.com/watch?v=SDezzDQVy6M

Havia um tempo repudiado. Um tempo desconhecido, que só podia figurar como eclipse na geografia onde o corpo se entedia. Falavam de filmes que eu não conhecia. Era como se houvesse uma vida que me pertencia e de que fora ausente.

O pensamento rasurado albergava as interrogações sucessivas. Já era uma dádiva saber formular as interrogações. Não pedia que as vidas não vividas viessem ao meu inventário. Aprendemos a povoar as impossibilidades à medida que as marés se enquistam na memória, deixando atrás delas os estilhaços que nunca puderam ser apanhados. Se essas vidas não foram vividas, ao menos os estilhaços por elas derramados não eram cobertos pela significação da vida de que era testemunha. 

Às vezes, diziam que gostavam de estar no avesso das coisas para saber o que deles era dito pelos outros. Era a sua métrica, todavia não assumida, de entrar em filmes que esperavam na penumbra pelos olhos enfim atentos. O critério era um segredo mal escondido: se a génese fosse identificada com precisão, poder-se-ia enumerar os filmes que nunca víramos e que estavam à espera da nossa tutela. Deixávamos o resto à paciência e à disciplina.

Uma voz invernal lembrava que não podemos dizer que somos testemunhas da noite, porque a noite é consumida pelo sono. Mas, à noite, enquanto o sono a atravessa, não estamos sozinhos na hibernação. O sono averba-se nos sonhos e nos pesadelos que, sem critério, aportam no cais de que somos curadores. É nas entrelinhas dos sonhos e dos pesadelos que cuidamos da noite que dizemos ser uma ausência. Esses são os filmes que dizemos que não vimos e que colonizam os sonhos e os pesadelos guardados na noite.

A especulação colhe o seu terreno fértil: qual seria o nosso papel nos filmes industriados pelos sonhos e pesadelos para que somos arregimentados? Deixamos ao critério da indiferença, a menos que queiramos substituir o tempo presente, o tempo que vem ao nosso regaço, pela nuvem de Juno onde as paredes se liquefazem ao menor toque dos dedos. Povoamos os sentidos com a métrica do pragmatismo: se o tempo é macerado pela escassez, por que nos deixamos seduzir por um tempo especulativo, pela transigência com o corpo imaterial do imprevisível? 

Intuímos uma resposta entre duas pinceladas do sol desmaiado que habita o ocaso. A vertigem do tempo especulativo mobiliza-se contra a implausibilidade do tempo presente, contra as suas arcadas dominantes que motivam a nossa sublevação. É desse tempo sem mácula, do tempo que não chega a ser, enfim, dos filmes que não vimos e nem participámos, que se levanta uma pulsão indomável. Queremos que haja teatro, muito teatro, a ocupar o palco onde assentamos. Como sucedâneo do único tempo que os sentidos conhecem e preferiam desconhecer. Participamos no princípio geral do fingimento e sentimos inteiros com isso.

Os filmes que nunca vi são aqueles que arrematam as personagens impuras que não moram no hoje sem adesão possível. São aqueles que um tempo especulativo, um tempo desenhado nas suas desregras, trouxer à margem. Nem que seja como despojos, ou como acasos açambarcados na ilíquida quota que de mim se teça. 

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