29.7.22

A fronteira que se move

Moderat, “Undo Redo”, in https://www.youtube.com/watch?v=EFkGsJ4bIGE

Não há geografias imudáveis. A arma do tempo esculpe as vontades que se mobilizam contra a letargia. As verdades são imputadas à contingência. Amanhã podem deixar de ser verdades e hoje podem não o ser para os outros. Que não seja esquecida a força demiúrgica da dissidência.

A gravilha que atapeta o chão move-se com a bonomia do vento, com o sacrifício estrutural dos lugares que se julgavam imóveis. Um imóvel só o é até se descobrir que mudou de lugar. Os costumes mandam dizer que as fronteiras não saem do lugar. As pessoas têm conhecimento das consequências das fronteiras. Mesmo quando são simbólicas, isto é, quando não travam a passagem das pessoas, não deixam de ser fronteiras; um embaraço ao pensamento. 

Há dias soube-se que um glaciar em degelo contínuo aposta em mudar uma fronteira entre Itália e Suíça. A modernidade conspira contra o estabelecido. É a luta contínua entre as forças conservadoras e as que promovem a mudança. Os primeiros têm medo da mudança e só consideram um habitat amigável se for coeso com o conhecimento que trazem como lastro. Os segundos sublevam-se contra as convenções e a rigidez do tempo. Advogam transfigurações que podem corresponder à adulteração do que temos por conhecido, desde que seja para melhorar a vida da maioria. 

As fronteiras das pessoas também são permeáveis à metamorfose. Os corpos têm as suas demarcações. Não mudam grande coisa, nem que o perímetro do corpo se altere por causa de dietas que o emagrecem ou de desmazelos que aumentam a sua volumetria. As fronteiras do corpo continuam a ser marcadas pelos seus limites, em ambos os casos. Uma pessoa pode mudar as fronteiras mentais. Por exemplo: alguém que viva circunscrito à exiguidade do seu terreno mental e que, a páginas tantas, transcende os limites porque o apetite de conhecimento o leva a procurar novos domínios. Só o faz se rasurar as delimitações que outrora o cingiam a uma pequena faixa de domínio mental.  

Os terrenos mentais têm uma vantagem sobre os territórios que se aferem pela geografia: a desmaterialização torna-os candidatos à fluidez das fronteiras que os demarcam. Ao desalfandegar o pensamento, ao ter abertura a novos domínios do conhecimento, ao tornar-se militante das artes, a pessoa descoloniza-se da inércia que o apequena. 

As fronteiras só são imóveis se quem as tutela assim quiser. 

28.7.22

Como diria o Antunes

New Order, “Atmosphere” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=oj4MnmnY59g

Os líquenes colhiam a beleza que assentava na água. Colibris extasiados sobrevoavam o aroma petulante dos líquenes. Se os versos não fossem avessos à temporalidade, este era um quadro próximo da infinitude. Digamos ao peito que as dores angariadas são o nosso decaimento para a indigência. Tiremos a angústia do dicionário.

Lembrei-me das diatribes do Antunes, que passavam sempre pelo foro da indiferença. O Antunes não deixou descendência. Não se conheceram namoradas, ou sequer casos de curta duração. Diziam que era um solitário, mas ele nunca confirmou. Era habitual estar absorto, na sua ascese. Não viva na mesmo mundo dos outros. Não se podia dizer que fosse distraído, pois tinha mão em todos os pormenores que compunham um cenário. Era frequentemente chamado a tirar as teimas quando dois de nós se opunham na hermenêutica de um acontecimento. 

O Antunes era habitualmente calado. Combinava com o sedentarismo social. Sendo pouco dado à palavra falada, não se conhecia produção escrita. Era dos poucos de nós que se escondeu sob o véu do anonimato. Era pena. Das poucas vezes que Antunes falava, usava uma discreta eloquência que nos deixava boquiabertos. Eram poemas corridos ao sabor das sílabas, com a inspiração tomada de assalto pela intempestividade das palavras que rompiam o silêncio.

Não se esperasse o ululante do Antunes. Não era visita assídua de exéquias. Tinha-as como a mais ilegítima antítese da homenagem ao falecido. Sempre que dizíamos adeus a alguém que nos merecia essa atenção, o Antunes exilava-se num lugar de que ninguém sabia o paradeiro. Era mais do que um exílio: estava dias a fio sem dar sinal de vida. Nunca confessou onde se escondia: 

Para que querem saber do lugar onde hibernei se o que conta é o adeus derradeiro que querem dedicar a fulano?

Um dia, sob o efeito do entardecer banhado por um sortilégio, já as bebidas iam avançadas, falava-se de mundanidades. O Antunes não recusava as coisas mundanas quando todos falávamos de coisas mundanas – pois todos éramos, nem que fosse um pouco, mundanos. Desafiado a pronunciar-se sobre as frivolidades que desfilavam, como se fossem necessárias para demonstrar a nossa imensa e frágil humanidade, o Antunes afagou o copo semivazio e, naquele seu jeito desajeitado, balbuciou:

Dantes tínhamos a pretensão de sermos heróis. Esse tempo nunca deixou de ser uma miragem. Agora reificámos a nossa exclusiva fragilidade. Somos mais humanos, menos dados à glorificação pueril. Devíamos nascer com esta idade. Ou com a idade depois da morte, só para não sermos espetadores da nossa própria homenagem. Tenho a certeza que desaprovaríamos a nossa própria homenagem sem podermos intervir de viva voz. Se agíssemos assim, não deixaríamos que os outros fossem agiotas da nossa morte.

27.7.22

Em vez dos nomes

Nick Cave and the Bad Seeds, “Bright Horses”, in https://www.youtube.com/watch?v=cfKYImFP_Pw

Subia a perplexidade ao saber que o seu nome era Estanislau: se fosse medido pela dioptria dos que julgam que os comunistas estão imunes à crítica, da minha perplexidade diriam ser uma manifestação de anticomunismo primário. 

Recuava, em movimento especulativo, à dimensão em que os pais de Estanislau concordaram sobre o nome do nascituro, vingasse ele após o parto. Quase de certeza – alvitro – seriam militantes do partido comunista e admiradores da União Soviética, partilhando, talvez, algumas idiossincrasias culturais com que o partido único infestou a sociedade.

Mas um nome era apenas um nome. Ou nada mais do que isso. Superando o movimento especulativo, que se poderia dizer de alguém que tinha o nome excêntrico de Estanislau? Saltando as barreiras da política (um lugar irremediavelmente mal frequentado), e dando mais corda ao movimento especulativo, poderiam os pais de Estanislau ser admiradores de Dostoievski. Há um Estanislau na obra de Dostoievski. Num salto argumentativo, os pais de Estanislau passariam da conotação com o saudosismo soviético-comunista para a esfera literária, ungidos com o reconhecimento ausente na ideologia política. Estanislau ganha, de repente, a credibilidade que a cultura tem e que não é imputada à política. 

Deve haver quem defenda que não devíamos ter as algemas de um nome. Por fora das convenções – pois um nome é identidade e sela os direitos de personalidade e outros de raiz constitucional –, não devíamos ter a existência dependente da correspondência a um nome. A favor da teoria: não é verdade que há artistas (escritores e músicos, sobretudo) que angariam pseudónimos para si mesmos? Libertam-se do jugo do nome com que foram creditados à nascença, sob o foro da pia batismal ou da chancela do registo civil, para a si chamarem um nome diferente, por eles recriado. Dirão os puristas da liberdade que o ato resgata a liberdade de quem decide reinventar-se com outro nome. Um pseudónimo é um nome. Não deixa de ser um nome. 

Os nomes são um anátema que carrega as pessoas com uma certa desliberdade. Uma alternativa que nos liberte da opressão dos nomes sem nos aprisionar a uma distopia parece – com o conhecimento havido – uma impossibilidade. Não se sabendo das costuras da distopia (a não ser que pode ser uma distopia), não seria reconhecida a troca da abolição dos nomes por uma qualquer alternativa vertida na distopia. 

Dir-se-ia: em vez dos nomes. Talvez a favor se diga que um nome não passa de um nome. 

26.7.22

Epílogo

Ólafur Arnalds, “Epilogue”, in https://www.youtube.com/watch?v=o6oZ5eh_A9A

A erva daninha removida adeja sobre os pesadelos. Teme-se que possa ser um fermento alojado numa toponímia, só à espera de ser ativado. A erva daninha talvez não tenha sido extinta. Está a medrar além do tempo visível na moldura que os olhos alcançam. Que ninguém diga que não está à mercê de fantasmas.  

Invoque-se um glaciar centenário para arrematar a erva daninha. Ou use-se o fogo, um lança-chamas se preciso for, para a dar como extinta. (Por paradoxal que seja o efeito: são as chamas ateadas que extinguem a erva daninha, mas fica um fogo clarão por extinguir – logo, um mal menor, em coro o dirão os pragmáticos.) Está em espera a audácia para arrematar a erva daninha. É o dobrar de cabo necessário para a deixar entregue ao olvido. Abrace-se o epílogo abotoado. Na formatura de um palco sem regras, os corpos deixados em letargia à mercê do acaso que se impõe à superfície. O epílogo pressente o futuro, interrompendo a mensagem da morte.

Não se procurem manuais para saber como alinhavar o epílogo. As circunstâncias tecem-se em seu tempo próprio, sem haver uma cunha que as forje. O epílogo não se abastece na proverbial vontade que se julgar sua procuradora. É tudo ao contrário: o epílogo é independente da vontade, vem servido no donativo dos acasos sucessivos que se impõem, espontâneos. Pois no epílogo levita um legado de futuro, costurado pela contingência que é própria desse tempo. Intui-se, o epílogo, como matéria indiferente da vontade.

O jogo final açambarca a suspensão do tempo. Esse é o donativo maior do epílogo. Como o deleite de um alpinista que atinge a cumeada e permanece, contemplativo, sem ter a noção do tempo, extasiado com a estatura da paisagem a seus pés. Serão precisas monções desmesuradas para dissolver da memória os epílogos assim açambarcados. Não se diga do medo que é a contingência involuntária do epílogo. 

Perenes, os epílogos não se confundem com uma breve maresia que se deita sobre o entardecer. As palavras amaciam os despojos que ultrapassam a moldura do tempo. Pendidos sobre a sorte avulsa, inscrevem os versos de ouro em páginas sem paradeiro.

25.7.22

O rosto escondido

The Cure, “Disintegration” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=l_G6P3eUE6o

A fita métrica usurpa as feições que se querem disfarçadas no nevoeiro. Não sempre é possível. Um abismo furtado aos deuses, na suposição da existência dos deuses, faz desabar as intenções. Sempre que houver um disfarce por perto, os rostos vestem-no.

De vez em quando, uma liturgia avulsa compõe o xadrez da esperança. Os rostos procuram ser ecuménicos, não se desviam do compromisso. Mostram aos regentes que possuem o poder do mundo que a lição que interessa é a do entendimento entre pares. Pois os rostos acabam todos por serem pares, por maiores que sejam as diferenças encerradas nas suas feições. Colhem a voragem dos dias para serem descomprometidamente os rostos que não se escondem se um espelho se intromete no caminho.

Pelo caminho, uns vultos espalham a desordem. Não querem a simplicidade das coisas. Convencem os demais que a simplicidade das coisas é um logro. (Mas não é.) E os rostos, apoderados pela intimidação, escorregam para os véus que os empobrecem. Alguém discordava: a matéria-prima dos rostos é composta por uma elevada dose de fealdade. Os rostos escondidos prestam tributo à estética. Mas não é isso que interessa. Ou por outro, a estética não pode ser desprezada – que fique bem entendido. Na ordem das prioridades, o fingimento sistemático dos rostos é miasmático, como se nesse esconder esteja contida uma castração voluntária de uma parte dos rostos, logo, de uma parte das pessoas. A estética fica para segundo plano.

No tempo da peste, os rostos andavam escondidos contra a vontade. Não foi um período significativo (para o efeito dos rostos sistematicamente escondidos). As pessoas desabituaram-se da plenitude dos rostos. Era como se a sua identidade tivesse sido amputada de metade e ninguém se importasse com os rostos escondidos por determinação a eles alheia. Quando as pessoas resgataram a plenitude dos rostos, açambarcaram a identidade que havia sido sitiada. Se hoje continuam rostos escondidos, em máscaras que se veja ou no véu de uma metáfora, são as vontades que assim se congeminam.

Mas não deixam de ser rostos escondidos. Para todos os efeitos. Rostos que se evadem da circunspeção do mundo à sua volta, como se precisassem de estar resguardados de um agente exterior, um agente agressor.

22.7.22

Sem maneiras (short stories #389)

Black Country, New Road, “Opus” (live from the Queen Elizabeth Hall), in https://www.youtube.com/watch?v=SWfLIIalMCg

          Os projetos acabam-se em si mesmos. São como celebrações preparadas com a diligência do tempo, mas quando se consumam sobra a invisível angústia de um vazio. Talvez seja a eterna insatisfação alimentada pela pureza da imperfeição das pessoas. Ou apenas a consagração de um processo, sem que o propósito de uma empreitada cresça nas preferências das pessoas: é o processo que as realiza, não a consumação da empreitada. Junte-se o formidável santuário do pensamento. Somos capazes do pensamento, mas não fiquemos deslumbrados. O pensamento também é um processo. Mesmo quando desata os nós de uma demanda, a recompensa interior depressa se esgota pela sensação de vazio que se apodera do dia seguinte. As proezas são paradoxais, elas contêm a não demorada ressaca por terem sido atingidas. A fragilidade humana consuma-se no esgotamento da demanda que se alinhava já como pertença do passado. É uma prova da humildade humana – ou apenas, voltando atrás, da sua irremediável insatisfação interior, o que tem a virtude de a afastar da propensão para a autoglorificação. Os legítimos filósofos ensinam que a sede por respostas é um logro; a riqueza do processo está em assentar as perguntas que aviva o pensamento. É desse cimento que precisamos. Pois uma pergunta não exige uma resposta. E se alguém se convencer que a resposta foi descoberta, é a inércia consequente que se ajuramenta. Se não, o pensamento capitula no logro que o deixa anestesiado. Os que se inebriam com uma resposta, cuidando dela como um feito, deixam à conta desse deslumbramento o fingimento de si próprios. Sem talvez saberem, cunham as suas próprias desmaneiras. Precisamos de uma bússola diferente, uma que dê caução a um novo comportamento. Para então não ser a angústia, consequente à sensação de vazio, que é hasteada quando o feito vai para o inventário dos projetos arrematados. 

21.7.22

Capítulo nove (short stories #388)

The Smile, “We Don’t Know What Tomorrow Brings” (Live at Primavera Sound 2022), in https://www.youtube.com/watch?v=arCjt-xulOM

          Os capítulos não são equidistantes – dizia, com a boca cheia de permanentes certezas. Ao amarrotar uma folha do jornal, queria que entendessem como um ato beligerante: precisava da afirmação e do reconhecimento da superioridade. Faltava o resto, mas o verniz, uma dura armadura enquistada, era mais do que uma tatuagem, e perene. Ninguém se atrevia a contestá-lo. O pedestal estava montado, sem tergiversações. Mas os capítulos não eram equidistantes. Por exemplo: o capítulo anterior fora um incidente que passou quase tão depressa como um esfregar de olhos. A sinecura, que – corria à boca pequena – seria o fastígio da carreira, extinguiu-se. “Diferenças irreconciliáveis”, foi o eufemismo vertido no comunicado oficial que selou a partida do colégio de regentes. Sem, todavia, lesar a honra do máximo regente e a dele, que dela precisava para não dar o flanco aos aspirantes que nunca deixariam de ser aspirantes (esta era a sua convicção). O capítulo nove começaria com a jubilação. Falava-se pelos corredores, da jubilação. Falava-se, porque todos os discípulos atiravam a incumbência para o aspirante do lado. Em surdina, chegavam ecos dos preparativos ao conhecimento do, em breve, homenageado. Fez saber que não interferia nos preparativos – que adorava surpresas, pois não as conhecera na aldeola miserável que nunca confidenciava como berço. Era como o máximo magistrado da nação: à frente das câmaras, instado a resgatar a vocação de comentador, começava sempre por jurar que não comentava o assunto, para, ao dobrar da vírgula, informar que, “em todo o caso” tinha isto e aquilo e aqueloutro a perorar. O jubilado queria que a homenagem correspondesse à sua vontade e aos seus caprichos, apesar de estar oficialmente em segredo de bastidores. Não visitava a comissão organizadora, mas enviava recados por interpostas pessoas. Estava quase, o capítulo nove. E os discípulos, excitados com a ideia de deixarem de ter o homenageado como presença assídua. Não contavam que ele não soubesse ter outra casa.   

20.7.22

Sem desforra (short stories #387)

 

The Jesus & Mary Chain, “Sidewalking”, in https://www.youtube.com/watch?v=W1AL2oTiTU0

         Os vidros partidos traduzem a decadência da zona industrial, já de si um postal desilustrado de decadência antes de os vidros terem sido estilhaçados. Ainda ninguém tinha varrido os estilhaços (decadência a dobrar). Juntava os dedos na expiação da angústia fora de si. Quem partira os vidros estaria ungido de uma terrível ira, só assim se explica os estilhaços dos vidros e que não houvesse alguém a varrê-los. Todos eram, por junto, cúmplices da angústia do autor dos estilhaços, como se a sua passividade tivesse o corpo da angústia do autor por todos partilhada. Podia-se pressentir que fora uma desforra a ganhar peito, as vidraças afinal não tão inocentes como se podia proclamar. Teria de haver nos vidros, antes de serem estilhaçados, a interiorização de uma culpa. A ira vertida numa culpa assim sentenciada, por instinto, sem o cunho de uma qualquer fundamentação. Pois a angústia não depende de fundamentos. Nas tumultuosas curvas não se apiedavam as mãos transidas pelo medo. O medo é um desproveito que vem sempre de fora. Quem folga do medo propende para o que é espontâneo; estilhaçar a primeira vidraça que apareça no caminho pode ser a causa do espontâneo. Ou então, tudo não terá passado de um incidente. Um bailado entre estroinas e uma pedra erradamente arremessada que só parou no vidro, por engano. Só os olhos da madrugada, habitualmente de atalaia, serão juízes. Mas os olhos da madrugada estão em paradeiro incerto. Ninguém conhece esses olhos (e menos o rosto respetivo). Não será por somenos dizer que não se aprisiona a especulação que ganha vida própria. Fica ao critério de cada subjetividade, pouco importando o seu compromisso com o plausível. A meias entre o estado iracundo e um incidente sem propósito, são os olhares observadores que se substituem ao contumaz olhar da madrugada. Não perguntem à verdade onde se esconde.

19.7.22

Bandeiras do avesso (short stories #386)

Trentemøller, “Nightwalker”, in https://www.youtube.com/watch?v=SasKGA1hq9Y

          Quantas vezes foram hasteadas bandeiras do avesso? Os verbos não se ensaiam na lisura das planícies; as fogueiras inclinam-se nos degraus fragosos e os corpos abraçam quimeras prometidas. Talvez sejam apenas sonhos – e os sonhos assim identificados transpõem a fronteira fluída e deixam de ser sonhos, tão tangentes à matéria que se sente. As pessoas porfiam na maré tumultuosa. Dizem que se não fosse tumultuosa não era maré, nem das pessoas se diria serem tutoras de proezas que o futuro ratifica. Se em vez de uma falésia temível olhassem para a finitude do horizonte, deixariam de lado os provérbios incandescentes que, todavia, não ateiam os fogos esperados. No Outono as varandas ainda não estão fechadas – dizes, como se fosse preciso arrematar a gramática da esperança. As varandas não se encerram porque sabem que o Outono é a quimera que os sentidos não materializam. Os pássaros acordam mais tarde do que pessoas que inauguram a alvorada. Não aquiescem em tão madrugador acordar. Não sei se houve um poeta a garantir a perenidade dos pássaros. Não sei se o Outono se reivindica fora da estação, como se decretasse o fim antecipado do Verão. Sei dos poemas que se levantam nas catedrais que desmentem a finitude das coisas. Os poemas contêm as suas próprias auroras. Também são infinitos os que não morrem por deixarem o seu nome legado na memória do futuro. Não morrem, nem os outros, anónimos, os seus nomes desconhecidos por quem tutela os inventários, pois que sem eles nem os primeiros teriam lugar na mnemónica do futuro. No meio do imenso areal, desfilam as bandeiras. Provavelmente algumas estarão vestidas do avesso. Não há ninguém que possa desfazer a dúvida. Tanto areal junto será sintoma de deserto. E os desertos são inabitados. Exceto pelas bandeiras que parecem nascidas de geração espontânea, vertidas sobre o abrasador areal como se fosse preciso dar-lhe um nome. 

18.7.22

Pranto em nota de rodapé (short stories #385)

Porridge Radio, “Eugh” (live at Green Mall Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=0NCeOJDv3tE

          Por perto da passagem de nível, não sabia se atravessava a linha. Não sabia, tanta a errância que colonizava aquele tempo. Recordava o que alguém dissera na antevéspera: “as lágrimas não podem ser aprisionadas, para não seres apanhado por um tsunami interior, a tua carne toda consumida por esses prantos reprimidos.” Talvez fosse consequência da cultura hegemónica, os preconceitos todos por junto e uma certa masculinidade tóxica, herdeira de tiques, no fundo, deseducativos. As lágrimas não eram uma manifestação de fraqueza. E lá subiam à superfície os preconceitos de identidade: por que proscreve a fraqueza de um homem? Admiti-la exige um desassombro que é prova de força que não está à mercê de qualquer um. À espera das entrelinhas ciciadas pelo devir, parecia que estava em demanda de uma consolação que legitimasse essas (assim consideradas) fragilidades. Em vez do pranto em nota de rodapé, devia assumir as lágrimas de frente, vertê-las à frente de quem quer que fosse, nas circunstâncias desenhadas ao acaso, sem preordenação orquestrada. Pois somos todos um lugar de fraqueza e escondê-lo é uma indignidade que arroteia a destruição de si. Escondê-lo é participar numa farsa. Para as notas de rodapé devíamos deixar as aparas que sobram das grandes questões. Os prantos não podem ser clandestinos. As lágrimas não são uma substância exilada por se encontrar em excesso (como acontece com o suor). As lágrimas são porta-vozes de palavras. O mostruário das convulsões que desarrumam o já de si caótico estado em que se leva a vida. Ou apenas o apuro das emoções que ultrapassam o estado descritivo das palavras. Deixá-las no regaço de uma nota de rodapé não presta justiça à beleza que há num pranto. Por mais que ele seja causado por uma angústia excruciante. Por mais que se subleve contra a serenidade da alma.

15.7.22

Um ramo de oliveira (“ou assim”)

Lisa Gerrard & Jules Maxwell, “Noyalain (Burn)”, in https://www.youtube.com/watch?v=13HWFBUOIWU

Consternado, perguntava ao simbólico devir como resolver as pendências que o tomavam de assalto. Temia ficar refém de uma qualquer beligerância – e as beligerâncias, exceção feita aos castrenses e aos lunáticos que medram na violência, era má moeda. 

Mas o devir continuava silencioso. Não era de esperar outra coisa. O devir ainda não tinha chegado. Ninguém pode falar antes do tempo. (Por muito que haja gente pródiga na cacofonia a destempo, mas essas são palavras destinadas à improcedência.) Não desistia da empreitada. As pendências não deixavam de ocupar assoalhadas do pensamento e ele encontrava-se sitiado num labirinto de inação.

Talvez laborasse num equívoco: ninguém é obrigado à ação contínua. Se assim fosse, seríamos feitos de uma matéria diferente e o tempo em que somos feitos não teria um lugar destinado ao descanso. Começava a revelar o avesso do negativo que justapunha a penumbra à luz timorata que ateava os dias: a consternação será apenas um lúdico desvio de outros cometimentos que anda a postergar – esta foi a hipótese levantada. O adiamento conferia o fingimento necessário para fugir ao que poderia ser a solene declaração de autonomia de todas as partes de si que representam uma dependência. Havia umas quantas a inventariar.

A demanda não cessava de desfilar nas costuras do horizonte – e as costuras, apenas o formato que é limítrofe à demanda, aparecem mais vívidas que o demais. A certa altura, despontou uma centelha de esperança. (E a esperança não se recusa, assim mandam as convenções recomendáveis.) Ouviu, em surdina, uma voz tentacular a ciciar: “pega num ramo de oliveira – pega num ramo de oliveira”, a segunda vez já com voz mais enfática, sílabas compassadas, numa métrica articulada, como se fosse uma mnemónica para o caso de deixar cair a recomendação nas águas-furtadas do pensamento. Que serventia teria o ramo de oliveira? O que dele podia fazer para resolver as pendências que teimavam em escurecer o chão que era paradeiro dos seus pés?

O ramo de oliveira – descobriu, depois de diligente investida nos manuais da significação – é metáfora da paz. De repente, descobriu que não estava em paz consigo. Todas as pendências anteriores perdiam cabimento. Agora, só havia uma pendência a descolorir os dias em espera. Tinha de arranjar as armas que aferissem a paz interior. Haveria de se deslocar à primeira oliveira para resgatar um ramo, que seria tatuado na pele. Agora, desconfiava que as anteriores pendências disfarçavam o sobressalto interior, as águas agitadas que impediam a letargia. 

Ficariam por confirmar as propriedades lisérgicas do ramo de oliveira. Oxalá o juramento não ficasse órfão na dilação do encorajamento.

14.7.22

Os erráticos iam para a cadeia (e os certinhos eram promovidos a regentes)

Joy Division, “Insight”, in https://www.youtube.com/watch?v=qWwG42jE-Cs

Participo do passado: iam todos para duas repartições: os bem-comportados, obedientes aos comandos determinados pelas boas convenções (as vigentes), promitentes do futuro; e os rebeldes, personificando uma errância desaconselhada de acordo com os mecenas dos bons costumes. 

O abismo tendia a agravar-se com o passar do tempo. Os certinhos habituavam-se à obediência: se as regras existiam eram incontestáveis. Os erráticos desprezavam todos os comandos apenas por serem comandos. Alguns, por manifesto prazer herdado do mau feitio, até eram capazes de reconhecer, no seu íntimo, a validade das regras. Mas não as cumpriam. Crescia o deleite da irreverência, fundamentada na excentricidade de quem não se revia nos padrões assinalados.

Os lugares ficavam antípodas. Os que consolidavam o sistema habituaram-se a ele, tiravam partido das regalias que o sistema oferecia. Alguns deles, também enfeudados no mau feitio, disfarçavam. Reprimiam-se na voluntária adesão aos costumes que lhes eram pródigos em vantagens materiais ou de estatuto. Deles não se dissesse que eram como prostitutas habituadas a abdicar da honra, mesmo que se intuísse que a honra era um conceito esvaziado. Isso não fosse dito, para ninguém ser processado. Às vezes, o paradeiro das verdades acaba por ser esgrimido em tribunal.

Os erráticos, cada vez mais dissidentes, adestravam-se na lógica do descomando. Por vezes, a transgressão lesava as leis estabelecidas e era cominada com uma temporada no ergástulo. No final da temporada, quase todos não reaprendiam a ser de acordo com os manuais de (boas) instruções. A rebeldia apurava-se. A esperança de reabilitação através da temporada no calabouço era minada pelas convicções de independência e pela afirmação de um lugar dissidente. 

Ocasionalmente, trocam de lugares. Uns erráticos, cansados do lugar desaprovado pelos bons costumes, fartos de serem olhados como párias, reconvertem-se às convenções. Entre eles, alguns conseguem chegar à regência, provando a versatilidade dos Homens e a tolerância dos espaços sociais. Outros, que outrora gravitaram na galáxia do poder, enxovalhados para a distante periferia da regência, não conseguem perdoar a infâmia. Admitindo-se injustiçados, neles fermenta o veneno da vingança. Mudam de lugar, passando a atapetar a geografia da transgressão.

Provado fica que os lugares de pertença não são a raiz de uma dicotomia sem margens. Os lugares antípodas são, mais depressa do que se admite, lugares contíguos.

13.7.22

Filho de um século menor

Smoke City, “Underwater Love” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=zFBuGeKkb2I

Não era a favor do apressamento da alma. Em tudo o que fosse pensamento, preferia a lucidez do miradouro, como se lhe fosse dada a vez de ser curador de um fiorde imaginário (esta não era a geografia dos fiordes).

As pessoas costumavam balizar-se por gerações. Nunca compreendeu esta arbitrariedade. Não aceitava que as gerações correspondessem a compartimentos estanques. Como se distinguia quem nascesse no dealbar de uma década de outrem que tinha nascido uns dias antes, ainda durante a vigência da década anterior? As convenções insistiam em arremeter pela possibilidade mais fácil – os tutores das convenções alegavam, em sua defesa, que precisamos de critério para simplificar as coisas. Mesmo que soubessem que as coisas gravitam numa outra órbita, feita de complexidade. Nunca havemos de deixar de parte o fingimento de que somos feitos.

Em vez do estatuído, preferia uma janela de tempo mais larga: falava de séculos em vez de décadas. De acordo com este critério, era filho de um século menor. Quem assim cunhou o século era exigente com o século em curso, usando a moderação na avaliação dos séculos que se ordenaram na cronologia. É esta a natureza dos Homens, quando não se entretêm com o autodeslumbramento que os aloja num irremediável narcisismo: o critério para aferir a medida em que nos encontramos é mais exigente do que o de tempos anteriores. 

Este é um século menor. Por mais que se angariem as proezas dos Homens clarividentes, dos que mandatam o avanço da espécie legitimado em variegadas legendas, o século ficava aquém do esperado. O balanço ainda inacabado (o século está longe da decadência) deixava o século longe do que em seu nome os otimistas haviam prometido. Este é um Homem que é filho de um século menor – afirmava-se, categoricamente, atirando sobre o século uma cólera sem paradeiro.

Os trabalhos são inacabados, porém. Um laivo de esperança irradiava sobre o porvir. Havia sempre um olhar que queria esconjurar as sombras do presente, ancorando-se na promessa de um futuro de outra cepa. Era uma jura arriscada: ao invocar a outra cepa, ninguém podia garantir que ela não fosse pior do que a cepa conjuntural. Uma escadaria não omite a possibilidade de descer uns degraus na etimologia da civilização. Contemplar esta possibilidade faz do Homem presente o filho de um século menor. 

12.7.22

Os padrinhos do futuro

Yeah Yeah Yeahs ft. Perfume Genius, “Spitting Off the Edge of the World”, in https://www.youtube.com/watch?v=ckM_TklU_AQ

Quem se prende ao limo arrastado pelo nevoeiro da alma? As estrelas são todas cadentes. Uma música vagamente evocativa de um passado interrompe a finitude do silêncio. Mas não mareiam as memórias que seriam resgatadas desse modo. Estariam ausentes, apenas uma circunstância de si mesmas, sem um ânimo reivindicado. O seu resgate seria uma usura.

Perfilam-se os sacerdotes da verdade. Desfilam mais a sua pose solene, como se neles gravitasse toda a armadura em que se albergam as pessoas. Quase ninguém percebia que a verdade é uma impostura determinada por quem a determina. Uma ditadura que se abate sobre os demais, sem que eles sejam capazes de a intuir. A maior das desliberdades que arremata os braços promissores do pensamento que se promete livre. 

As pontes terçadas deixavam de ser desfiladeiros. Era a compensação que se ajuramentava no equilíbrio despojado de embaraços. Em vez das meias palavras, dos garrotes que aferrolham a alma e a amputam dos juros por vencer, o desfiladeiro atemorizava a vontade. Impunha-lhe freios que a embaciavam, como se um esquadrão de iracundos guerreiros adejasse sobre a matéria futura, algemando-a.

“Os engenheiros que são os pais fundadores das pontes deviam receber as maiores comendas.” Não sabia as origens da frase que, todavia, ficara a pairar sobre o horizonte onde se arrecadam as palavras sensíveis. As pontes que redesenham a geografia são como chaves da linguagem cifrada que a preenche com sobressaltos. Desses acidentes da geografia sobressaem os estorvos à circulação das pessoas e das coisas. Um dos piores pesadelos. As pontes reconciliam as gentes divididas pela destemperada geografia.

Nos contrafortes do sossego, as mãos desenham estrofes heurísticas. Diferentes mãos tutelam estrofes sucessivas, num poema coletivo que se autoriza na firme representação das vontades cimentadas. À espera de ser a manhã desarmada dos medos de outrora, os olhares já só esperando a amenidade dos amanhãs que estejam na paciente linha de montagem. E os operários, todos eles convertidos em poetas sem o saberem.

11.7.22

O aparato não carrega a circunstância

Bonobo, “Cirrus”, in https://www.youtube.com/watch?v=WF34N4gJAKE

Das notícias, na variedade cor-de-rosa (um oxímoro): os “looks” dos notáveis que desfilam num festival de Verão. Antes de haver notícias sobre os artistas que desfilam no festival de Verão, desfilia-se a vertente artística porque a urgência em mostrar as indumentárias dos notáveis precede a lógica do festival. Condiz com uma certa cosmovisão alimentada pela frivolidade que campeia: insignificâncias convertidas em essencial, atirando o essencial para um lugar secundário (ou ainda menos).

Será que os notáveis se apessoam, todos pimpões, sabendo que as indiscretas câmaras fotográficas estão de atalaia à espera de mostrar ao mundo como se aformosearam só para (em princípio) irem vir concertos num festival de Verão? Parto do pressuposto de que existe mercado na imprensa para este chorrilho de mundanidades. Há quem não saiba quem atuou no festival de Verão, mas consiga descrever, com detalhes que fariam corar um escritor neorrealista, a indumentária de um qualquer socialite

A costela liberal manda que se aceite o estilo, já que para ele existe um mercado.

Essas celebridades assistiram a quantos concertos? Havendo mercado para esta gesta de leviandades, para os notáveis um festival de Verão é apenas uma oportunidade para se darem a conhecer àquela parte do mundo (cada vez mais concorrida) que os quer conhecer até no domínio do vestuário que envergam. Deito-me a adivinhar: muitos desses notáveis esmeram na indumentária só para se porem a jeito das câmaras fotográficas, pondo-se depois a caminho da zona VIP onde bebericam uns cocktails e comericam uns acepipes – pois umas borlas não são despiciendas. Porventura, ouvirão os ecos de um concerto ao longe, num dos palcos em funcionamento, mas não descem à plateia para assistirem a um concerto. Os notáveis não se misturam com a ralé. Mas não são ninguém sem a ralé que, indigentemente, os pajeia.

Entretanto, ungem-se do aparato de que são feitos, pois essa é a sua superficial têmpera. Que não sejam perguntados a não ser sobre mundanas coisas, como a farpela toda ajanotada (como se houvesse um protocolo a respeitar em festivais de Verão), pois aos costumes têm um imenso nada para dizer. A condizer com o apenas verniz de que são feitos.

8.7.22

Um Martini de rascunho

Blur, “Girls and Boys”, in https://www.youtube.com/watch?v=WDswiT87oo8

          Continuava a acrescentar itens ao inventário das absurdidades. Homens depilados. Um político inesperadamente honesto (não era contra a honestidade dos políticos, nem contra a honestidade em geral; apenas os julgava peixes fora do aquário e, entrados nessa via, necessariamente condenados ao fiasco). Espertalhões e ingénuos, pela mesma medida e bitolas opostas. Carruagens de comboios pichadas de uma ponta à outra, numa exibição de desarte. Maneirismos dos burgueses dos bons hábitos consumistas – como metodicamente menearem o copo de vinho antes da degustação, contrariando a boa ciência. Soezes que descarregam a fúria em inocentes, sem darem conta que o código postal está treslido. Ignorância em estado latente. Gurus de autoajuda e a irreprimível curiosidade de ser mosca para estar por dentro das suas vidas e desmenti-los por más práticas próprias. Sorrisos excentricamente cansativos das apresentadoras de televisão (oh, como entendo António Pedro Ribeiro dos Sereias!). Profetas do menor denominador comum. Vomitadores de futuro ao arrepio da História, dos mais diversos quadrantes e calibres. Catedráticos das suas certezas imperativas, do apenas porque sim. Escansões dos sentimentos alheios, na esteira dos gurus de autoajuda, a caminho de serem aspirantes a sê-lo (num processo de autoconvencimento pueril). Lídimos professores de moral e dos bons costumes com extensão nas vidas alheias, mas provavelmente não nas suas próprias – só para se confirmar o adágio popular que mistura palavras com ações, impetrando que apenas as primeiras sejam aferidas na báscula. Gente muito ativista, aparentemente descomprometida, ou apenas comprometida com a causa defendida, lobrigando numa intolerância invisível. Narcisistas de primeira cepa (que é igual a pior igualha), disfarçando a sua pungência. Mitómanos a ganharem o jogo aos misantropos. Misóginos a esconderem as fraquezas pessoais, decaindo numa mitomania sem gramática. Comissários do discurso obrigatório, com o meticuloso escrutínio sobre proibições discursivas e as inerentes punições que ostracizam quem disside. Gente disfarçada de gente, ou disfarces em vez de gente. Os cânones, em geral.

7.7.22

Barbitúricos para o marialva

Linda Martini, “O Dia em que a Música Morreu”, in https://www.youtube.com/watch?v=sejxgBvI_ig

Brinda à bravura de quem se oferece, de corpo inteiro e sem meias-medidas, ao touro em pega de caras. A bravura multiplica-se por casas decimais só de pressentir que os que observam elogiam o seu destemor – “ah! homem valente, grandes túbaros terá!” Avança, convicto, para a besta que promete arremeter sem comiseração. O marialva está convencido que o ato de valentia representa alguma coisa. Não sabe ao certo o quê. Não se lhe peça explicação fundamentada, que as capacidades não servem para tanto.

Encaixa o touro mesmo na ossatura compreendida entre os dois chifres. A força da besta sacode-o de um lado para o outro, fazendo um ricochete de si mesmo. Pese embora a violência da colisão, e a força que suporta enquanto consegue estar encaixado na fronte do bicho, o forcado de circunstância está no limite das forças. Sente que não consegue domar o touro. O bicho, num arremedo de força ainda mais bruta, meneia a cabeça de tal forma que o marialva é projetado no ar. Estaciona nas paliçadas que delimitam a arena. Está abalado. Mas convencido de como foi exemplar a sua intrepidez. Só não sabe para que efeito (a não ser uma vã glória interior que não oferece compensação exterior). 

Uma testemunha da proeza não está convencida que se possa chamar proeza ao que acabou de assistir: “Assim também eu, os chifres do animal vinham com proteção...” O forcado de ocasião levanta-se de repente. Ao ouvir aquela provocação, deixou de estar combalido. Arregaça as mangas (outra vez) e dirige-se ao provocador. Não sabe quem disparou aquele dislate, só ouviu a voz peçonhenta. “Acuse-se quem me acusou de fingimento. Acuse-se já, não se acovarde no silêncio, agora que estamos cara a cara.” O marialva queria a segunda parte da pega de caras. Desta vez a função seria entre iguais, se o provocador não escondesse a identidade.

O marialva recolheu aos seus aposentos com o ego do tamanho da inflação vigente. Dos presentes, só ele é que se propôs pegar o touro de caras. Talvez a sua bravura tenha intimidado o espetador que o provocou, depressa remetido ao anonimato. Naquela noite, o mais bravo da aldeia podia dormir descansado. Estava provado: ele era o mais bravo da aldeia (e arredores). Não havia melhor barbitúrico, à falta de massa cinzenta para explicar a si mesmo a irrelevância de tanto exibicionismo afoito.

6.7.22

A sede de futuro

Bonobo, “Kerala” (live at Glastonbury 2022), in https://www.youtube.com/watch?v=28Uxx24t-qM

Quando pede para perorar sobre a atualidade, depressa a comunicação social escorrega para as previsões do futuro. Por mais que procure levar ao entendimento que adivinhar o futuro não é tarefa das ciências sociais, o jornalista insiste. Tem uma imensa sede de futuro, como se na sua função estivesse incluída ser mecenas do tempo por adivinhar. 

Insisto, perante a insistência do jornalista: não tenho um oráculo nas mãos e qualquer tentativa de antecipar o futuro é especulativa. O futuro tem a particularidade de torcer as voltas ao esperado e muitas vezes se compor do inesperado. Não me sinto capacitado para ser executante de um qualquer esoterismo que aposta sobre o porvir. Mas o jornalista, tão sedento de levantar o véu do futuro, persiste na interrogação. Desenha-a com outras palavras: “perante o que conhecemos agora, e mantendo-se as tendências atuais, o que se pode esperar do amanhã?” Antes que fique desarmado perante tanto voluntarismo, aviso que o conhecimento do presente não é cautelar das probabilidades do futuro. A contingência anda abraçada à incerteza, o nome de família do futuro.

Não sei se o código deontológico dos jornalistas foi mudado para que sejam afins dos meteorologistas. Desconheço se os leitores são ávidos consumidores do futuro na sua forma presente. É possível que a avidez de futuro tenha algum significado – e que ele seja patológico. Quem tanto quer saber sobre o futuro não atribui a devida importância ao presente. Desgasta o tempo presente, o único que tem entre as mãos. Ou pode ser o resultado de um desejo irreprimível de ultrapassar a dimensão desconhecida que é inata ao futuro. A incerteza amedronta. As pessoas sentir-se-ão mais cómodas se, por dotes de prestidigitação (ou apenas por impostura), alguém lhes forneça a tábua de salvação que desfaz o enigma sobre o futuro.

O jornalista porfia, ao saber da relutância em falar sobre o que não sei: “ao menos podemos saber com o que contar”, justifica-se. As pessoas querem prevenção contra os sobressaltos do futuro? Estas perguntas sobre o futuro parecem partir de uma premissa: o futuro vai a caminho de ser pior do que os tempos de agora; temos de nos preparar para os tempos adversos, como se fôssemos militantes de um estado permanente de crise. E o futuro dela se componha, por defeito. 

Um pensamento paradoxal sobe à superfície: a precaução contra as probabilidades de um futuro contingente, com negros matizes, é uma prova de otimismo antropológico. 

5.7.22

O gordo vai para a bancada (nem para a baliza vai)

Lisa Gerrard & Jules Maxwell, “Deshta (Forever)”, in https://www.youtube.com/watch?v=ho6bnBWW5pk

Se é sinceramente, vamos todos para o purgatório. Sem bocas para verter cozinhamos o vinagre deitado contra os sofismas que prometem indecoros. Não importa. Dissemos que o gordo vai à baliza, mas estávamos errados. O gordo nem à baliza vai. Fica na bancada.

Tirando o amanhã, as flores vistosas encamisam o dia inesperado. Contava-se com chuva, mas está um dia de sol. Outro episódio que reforça o anátema dos meteorologistas. É como se tivéssemos entrado numa degustação de sentidos e nos fosse requerido que, quais eruditos, puséssemos a riqueza de vocabulário ao serviço da empreitada descritiva do consumido na degustação. A páginas tantas, estaríamos a inventar palavras, ou a usar algumas que já ouvimos ou lemos em tempo, sem, todavia, sabermos o seu significado. Podíamos convidar o gordo a deixar a bancada, pois o gordo é conhecido pela sua facúndia vocabular. 

Mas não fingimos. Somos constituídos arguidos pelo delito de exprobração corporal de outrem. A discriminação do gordo foi patente. Primeiro decidíramos que o gordo ia à baliza. Onde teria utilidade: primeiro, corre pouco e é preciso gente disposta a correr o campo de um lado ao outro; segundo, a volumetria corporal dá-lhe uma vantagem, ao ter maior percentagem do corpo a ocupar o espaço da baliza (o que diminui a probabilidade de golo do adversário). Afinal, nem deixámos que o gordo fosse à baliza. Nem com tanto corpo a esconder as redes da baliza o gordo se conseguia mexer. A inação materializava-se na muita parte da baliza que ficava à mostra do adversário. O gordo era como muita parra e pouca uva, pese embora as promessas do oposto.

Mandámos o gordo para a bancada (e sabíamos que ele obedecia). Não quisemos saber dos protestos vocais dos habituais advogados de defesa das causas que mobilizam as vanguardas sociais. Não éramos parte dessas vanguardas sociais. A nossa equipa chamava-se “Os Velhos do Restelo” e não era por acaso.

O gordo – a que ninguém pediu opinião – não se importava de estar na bancada. Ia fazendo as palavras cruzadas, enquanto deitava o olho sobrante ao jogo em curso. Os que tanto defendiam o gordo contra a discriminação baseada na volumetria do corpo cometeram o seu próprio pecadilho: não perguntaram ao gordo se preferia ir à baliza ou juntar-se aos inquilinos da bancada. O esquecimento não foi um acaso. Os obstetras do politicamente correto e dos novos imperativos categóricos sabiam que resposta daria o gordo se lhe fizessem a pergunta que se esqueceram de fazer.

Os gordos mentais são, amiúde, os anões de outras convenções. Só que não sabem. 

4.7.22

A página excessiva

Wet Leg, “Chaise Longue” (live at BBC Music Introducing SXSW 2022), in https://www.youtube.com/watch?v=bC-41HN7HIY

A muralha arrancada ao vagar fortuito redimia o medo. As páginas sucediam-se, na antinomia desse vagar. Dizia: se a lua não se opuser ao braço insistente, as ideias convencem-se da sua fecundidade. Os olhos sobressaltavam-se, como se o navio fosse avisado, mesmo em cima da hora, de um obstáculo imerso que era preciso evitar.

Cada página tinha uma residência própria. Os dedos avulsos passavam pelas páginas com a mesma indiferença com que as pessoas se cruzam ao serem desconhecidas. Cada página estava a mais. Essa excessividade não era patrulhada pelos tutores das coisas banais em que medram os moralismos militantemente diligenciados. Eram excessivas, as páginas, sempre que delas não sobrasse ao menos uma remota evocação para um lugar futuro. Jogavam-se no putrefacto mercado da popularidade. Esse era o seu infortúnio, um desfado de que não conseguiam fugir.

Mas as páginas, mesmo sendo entendidas como excessivas, mereciam visitação; se não, como poderiam ser arrumadas no santuário da inutilidade? Algumas dessas páginas podiam encerrar sortilégios que, de outro modo, ficariam a coberto do conhecimento. Fosse como fosse – pensei, em defesa dos linguistas do esquecimento –, se nunca fossem reveladas como cais onde se encontram os sortilégios, estes sortilégios não o seriam, por desconhecimento de causa.

As páginas eram excessivas porque muitas das palavras estavam a mais. Dizia-se: essas palavras não acrescentam nada, acabam por se arrastar na sua orfandade. São um peso que se arqueia sobre os rostos cansados de quem as tutela. O efeito semântico da exaustão das palavras cinde-se no aparente desmotivo de uma certa estética. Só os mecenas da literatura, os admiradores de toda a literatura (argumentam: não há literatura menor), arregimentam as páginas compulsadas e por outros deixadas à mercê da reciclagem. Para eles, não há uma única página decadente, uma única página a perder de vista.

Mas havia pessoas que insistiam: há páginas excessivas, do mesmo modo que há falas prolixas e, contudo, gongóricas. Palavras que não acrescentam nada – palavras sem sumo, apenas parra, na visível poluição da semântica. E nem as molduras enquistadas pelos costumes chegavam para demover este convencimento. Uma vez destinadas à inutilidade excessiva, as páginas estavam condenadas a ficar aprisionadas num lugar inacessível. Perdidas, portanto. 

E se perdidas eram, deixavam de ser um lugar acusando peso excessivo. 

1.7.22

O despacho precoce

(Um manual de amadorismo – ou as inconsequências de um D. Quixote fora da moldura)

O aspirante não esconde que quer ser primeiro. Como acontece a estes jogadores, move-se no tabuleiro como peça sub-reptícia, calculista, falando nos interstícios dos silêncios e ditando silêncios portentosos através das palavras que só aparentemente significam o que da sua leitura se infere. O aspirante nunca reconhece a condição antes do tempo. A sua extemporaneidade pode ser fatal para as ambições que se desenham numa penumbra pouco visível.

Mas o aspirante pode acordar num dia mau e as manobras terçadas podem-se voltar contra ele. Pode estar convencido que atirou uma potente arma de arremesso, uma arma que cala os que de si são adversários (fora e dentro da seita) e que mobiliza a turba – pois a turba, amante de sangue em geral, aprecia os anúncios contundentes que prometem que a obra será faraónica; a turba ainda não consegue lidar com as dores de decrescimento de quem regeu um império entretanto esvaído. Talvez o aspirante tenha atirado um boomerang, em vez de uma arma a seu favor. Os boomerangs costumam ser devolvidos a quem os arrojou. 

Mas as contas saíram furadas ao aspirante. No dia seguinte, o superior hierárquico voltou com a palavra atrás. A palavra do aspirante foi desmentida, sem meias-tintas, pelo chefe de que o aspirante se julga delfim. 

Agora, o comentariado profissional, e o amador também, está amarrado a uma nebulosa interpretativa. Alguns exigem a capitulação do aspirante, levando à sua extração do escol de regentes. Outros, possuidores de um oráculo que salta várias etapas na cronologia dos comuns, antecipam manobras complexas. Uns certificam a oficialização da condição de aspirante do aspirante. Será oposição ao regente sem ser oposição formalizada. Como se na seita tivesse sido deposta uma cesta com ovos de víbora. Outros, mais conspirativos, pressentem que são manobras para o aspirante libertar o superior hierárquico para outros voos.

Eu, que não possuo tamanhas capacidades divinatórias, verto uma lágrima de pesar pelo despacho precoce, por ter sido precocemente levado ao aborto pelo regente assim tão insensível. Se o aspirante oficializa a sua condição de aspirante, ou se o regente cortou relações com o aspirante e assim lhe retirou o estatuto – ou se o regente montou a estrangeirinha para olear a rampa de lançamento para mais altos voos, essas são movimentações num tabuleiro de que prefiro ser forasteiro.