Os vidros partidos traduzem a decadência da zona industrial, já de si um postal desilustrado de decadência antes de os vidros terem sido estilhaçados. Ainda ninguém tinha varrido os estilhaços (decadência a dobrar). Juntava os dedos na expiação da angústia fora de si. Quem partira os vidros estaria ungido de uma terrível ira, só assim se explica os estilhaços dos vidros e que não houvesse alguém a varrê-los. Todos eram, por junto, cúmplices da angústia do autor dos estilhaços, como se a sua passividade tivesse o corpo da angústia do autor por todos partilhada. Podia-se pressentir que fora uma desforra a ganhar peito, as vidraças afinal não tão inocentes como se podia proclamar. Teria de haver nos vidros, antes de serem estilhaçados, a interiorização de uma culpa. A ira vertida numa culpa assim sentenciada, por instinto, sem o cunho de uma qualquer fundamentação. Pois a angústia não depende de fundamentos. Nas tumultuosas curvas não se apiedavam as mãos transidas pelo medo. O medo é um desproveito que vem sempre de fora. Quem folga do medo propende para o que é espontâneo; estilhaçar a primeira vidraça que apareça no caminho pode ser a causa do espontâneo. Ou então, tudo não terá passado de um incidente. Um bailado entre estroinas e uma pedra erradamente arremessada que só parou no vidro, por engano. Só os olhos da madrugada, habitualmente de atalaia, serão juízes. Mas os olhos da madrugada estão em paradeiro incerto. Ninguém conhece esses olhos (e menos o rosto respetivo). Não será por somenos dizer que não se aprisiona a especulação que ganha vida própria. Fica ao critério de cada subjetividade, pouco importando o seu compromisso com o plausível. A meias entre o estado iracundo e um incidente sem propósito, são os olhares observadores que se substituem ao contumaz olhar da madrugada. Não perguntem à verdade onde se esconde.
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