18.7.22

Pranto em nota de rodapé (short stories #385)

Porridge Radio, “Eugh” (live at Green Mall Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=0NCeOJDv3tE

          Por perto da passagem de nível, não sabia se atravessava a linha. Não sabia, tanta a errância que colonizava aquele tempo. Recordava o que alguém dissera na antevéspera: “as lágrimas não podem ser aprisionadas, para não seres apanhado por um tsunami interior, a tua carne toda consumida por esses prantos reprimidos.” Talvez fosse consequência da cultura hegemónica, os preconceitos todos por junto e uma certa masculinidade tóxica, herdeira de tiques, no fundo, deseducativos. As lágrimas não eram uma manifestação de fraqueza. E lá subiam à superfície os preconceitos de identidade: por que proscreve a fraqueza de um homem? Admiti-la exige um desassombro que é prova de força que não está à mercê de qualquer um. À espera das entrelinhas ciciadas pelo devir, parecia que estava em demanda de uma consolação que legitimasse essas (assim consideradas) fragilidades. Em vez do pranto em nota de rodapé, devia assumir as lágrimas de frente, vertê-las à frente de quem quer que fosse, nas circunstâncias desenhadas ao acaso, sem preordenação orquestrada. Pois somos todos um lugar de fraqueza e escondê-lo é uma indignidade que arroteia a destruição de si. Escondê-lo é participar numa farsa. Para as notas de rodapé devíamos deixar as aparas que sobram das grandes questões. Os prantos não podem ser clandestinos. As lágrimas não são uma substância exilada por se encontrar em excesso (como acontece com o suor). As lágrimas são porta-vozes de palavras. O mostruário das convulsões que desarrumam o já de si caótico estado em que se leva a vida. Ou apenas o apuro das emoções que ultrapassam o estado descritivo das palavras. Deixá-las no regaço de uma nota de rodapé não presta justiça à beleza que há num pranto. Por mais que ele seja causado por uma angústia excruciante. Por mais que se subleve contra a serenidade da alma.

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