4.7.22

A página excessiva

Wet Leg, “Chaise Longue” (live at BBC Music Introducing SXSW 2022), in https://www.youtube.com/watch?v=bC-41HN7HIY

A muralha arrancada ao vagar fortuito redimia o medo. As páginas sucediam-se, na antinomia desse vagar. Dizia: se a lua não se opuser ao braço insistente, as ideias convencem-se da sua fecundidade. Os olhos sobressaltavam-se, como se o navio fosse avisado, mesmo em cima da hora, de um obstáculo imerso que era preciso evitar.

Cada página tinha uma residência própria. Os dedos avulsos passavam pelas páginas com a mesma indiferença com que as pessoas se cruzam ao serem desconhecidas. Cada página estava a mais. Essa excessividade não era patrulhada pelos tutores das coisas banais em que medram os moralismos militantemente diligenciados. Eram excessivas, as páginas, sempre que delas não sobrasse ao menos uma remota evocação para um lugar futuro. Jogavam-se no putrefacto mercado da popularidade. Esse era o seu infortúnio, um desfado de que não conseguiam fugir.

Mas as páginas, mesmo sendo entendidas como excessivas, mereciam visitação; se não, como poderiam ser arrumadas no santuário da inutilidade? Algumas dessas páginas podiam encerrar sortilégios que, de outro modo, ficariam a coberto do conhecimento. Fosse como fosse – pensei, em defesa dos linguistas do esquecimento –, se nunca fossem reveladas como cais onde se encontram os sortilégios, estes sortilégios não o seriam, por desconhecimento de causa.

As páginas eram excessivas porque muitas das palavras estavam a mais. Dizia-se: essas palavras não acrescentam nada, acabam por se arrastar na sua orfandade. São um peso que se arqueia sobre os rostos cansados de quem as tutela. O efeito semântico da exaustão das palavras cinde-se no aparente desmotivo de uma certa estética. Só os mecenas da literatura, os admiradores de toda a literatura (argumentam: não há literatura menor), arregimentam as páginas compulsadas e por outros deixadas à mercê da reciclagem. Para eles, não há uma única página decadente, uma única página a perder de vista.

Mas havia pessoas que insistiam: há páginas excessivas, do mesmo modo que há falas prolixas e, contudo, gongóricas. Palavras que não acrescentam nada – palavras sem sumo, apenas parra, na visível poluição da semântica. E nem as molduras enquistadas pelos costumes chegavam para demover este convencimento. Uma vez destinadas à inutilidade excessiva, as páginas estavam condenadas a ficar aprisionadas num lugar inacessível. Perdidas, portanto. 

E se perdidas eram, deixavam de ser um lugar acusando peso excessivo. 

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