19.7.22

Bandeiras do avesso (short stories #386)

Trentemøller, “Nightwalker”, in https://www.youtube.com/watch?v=SasKGA1hq9Y

          Quantas vezes foram hasteadas bandeiras do avesso? Os verbos não se ensaiam na lisura das planícies; as fogueiras inclinam-se nos degraus fragosos e os corpos abraçam quimeras prometidas. Talvez sejam apenas sonhos – e os sonhos assim identificados transpõem a fronteira fluída e deixam de ser sonhos, tão tangentes à matéria que se sente. As pessoas porfiam na maré tumultuosa. Dizem que se não fosse tumultuosa não era maré, nem das pessoas se diria serem tutoras de proezas que o futuro ratifica. Se em vez de uma falésia temível olhassem para a finitude do horizonte, deixariam de lado os provérbios incandescentes que, todavia, não ateiam os fogos esperados. No Outono as varandas ainda não estão fechadas – dizes, como se fosse preciso arrematar a gramática da esperança. As varandas não se encerram porque sabem que o Outono é a quimera que os sentidos não materializam. Os pássaros acordam mais tarde do que pessoas que inauguram a alvorada. Não aquiescem em tão madrugador acordar. Não sei se houve um poeta a garantir a perenidade dos pássaros. Não sei se o Outono se reivindica fora da estação, como se decretasse o fim antecipado do Verão. Sei dos poemas que se levantam nas catedrais que desmentem a finitude das coisas. Os poemas contêm as suas próprias auroras. Também são infinitos os que não morrem por deixarem o seu nome legado na memória do futuro. Não morrem, nem os outros, anónimos, os seus nomes desconhecidos por quem tutela os inventários, pois que sem eles nem os primeiros teriam lugar na mnemónica do futuro. No meio do imenso areal, desfilam as bandeiras. Provavelmente algumas estarão vestidas do avesso. Não há ninguém que possa desfazer a dúvida. Tanto areal junto será sintoma de deserto. E os desertos são inabitados. Exceto pelas bandeiras que parecem nascidas de geração espontânea, vertidas sobre o abrasador areal como se fosse preciso dar-lhe um nome. 

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