Participo do passado: iam todos para duas repartições: os bem-comportados, obedientes aos comandos determinados pelas boas convenções (as vigentes), promitentes do futuro; e os rebeldes, personificando uma errância desaconselhada de acordo com os mecenas dos bons costumes.
O abismo tendia a agravar-se com o passar do tempo. Os certinhos habituavam-se à obediência: se as regras existiam eram incontestáveis. Os erráticos desprezavam todos os comandos apenas por serem comandos. Alguns, por manifesto prazer herdado do mau feitio, até eram capazes de reconhecer, no seu íntimo, a validade das regras. Mas não as cumpriam. Crescia o deleite da irreverência, fundamentada na excentricidade de quem não se revia nos padrões assinalados.
Os lugares ficavam antípodas. Os que consolidavam o sistema habituaram-se a ele, tiravam partido das regalias que o sistema oferecia. Alguns deles, também enfeudados no mau feitio, disfarçavam. Reprimiam-se na voluntária adesão aos costumes que lhes eram pródigos em vantagens materiais ou de estatuto. Deles não se dissesse que eram como prostitutas habituadas a abdicar da honra, mesmo que se intuísse que a honra era um conceito esvaziado. Isso não fosse dito, para ninguém ser processado. Às vezes, o paradeiro das verdades acaba por ser esgrimido em tribunal.
Os erráticos, cada vez mais dissidentes, adestravam-se na lógica do descomando. Por vezes, a transgressão lesava as leis estabelecidas e era cominada com uma temporada no ergástulo. No final da temporada, quase todos não reaprendiam a ser de acordo com os manuais de (boas) instruções. A rebeldia apurava-se. A esperança de reabilitação através da temporada no calabouço era minada pelas convicções de independência e pela afirmação de um lugar dissidente.
Ocasionalmente, trocam de lugares. Uns erráticos, cansados do lugar desaprovado pelos bons costumes, fartos de serem olhados como párias, reconvertem-se às convenções. Entre eles, alguns conseguem chegar à regência, provando a versatilidade dos Homens e a tolerância dos espaços sociais. Outros, que outrora gravitaram na galáxia do poder, enxovalhados para a distante periferia da regência, não conseguem perdoar a infâmia. Admitindo-se injustiçados, neles fermenta o veneno da vingança. Mudam de lugar, passando a atapetar a geografia da transgressão.
Provado fica que os lugares de pertença não são a raiz de uma dicotomia sem margens. Os lugares antípodas são, mais depressa do que se admite, lugares contíguos.
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