28.7.22

Como diria o Antunes

New Order, “Atmosphere” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=oj4MnmnY59g

Os líquenes colhiam a beleza que assentava na água. Colibris extasiados sobrevoavam o aroma petulante dos líquenes. Se os versos não fossem avessos à temporalidade, este era um quadro próximo da infinitude. Digamos ao peito que as dores angariadas são o nosso decaimento para a indigência. Tiremos a angústia do dicionário.

Lembrei-me das diatribes do Antunes, que passavam sempre pelo foro da indiferença. O Antunes não deixou descendência. Não se conheceram namoradas, ou sequer casos de curta duração. Diziam que era um solitário, mas ele nunca confirmou. Era habitual estar absorto, na sua ascese. Não viva na mesmo mundo dos outros. Não se podia dizer que fosse distraído, pois tinha mão em todos os pormenores que compunham um cenário. Era frequentemente chamado a tirar as teimas quando dois de nós se opunham na hermenêutica de um acontecimento. 

O Antunes era habitualmente calado. Combinava com o sedentarismo social. Sendo pouco dado à palavra falada, não se conhecia produção escrita. Era dos poucos de nós que se escondeu sob o véu do anonimato. Era pena. Das poucas vezes que Antunes falava, usava uma discreta eloquência que nos deixava boquiabertos. Eram poemas corridos ao sabor das sílabas, com a inspiração tomada de assalto pela intempestividade das palavras que rompiam o silêncio.

Não se esperasse o ululante do Antunes. Não era visita assídua de exéquias. Tinha-as como a mais ilegítima antítese da homenagem ao falecido. Sempre que dizíamos adeus a alguém que nos merecia essa atenção, o Antunes exilava-se num lugar de que ninguém sabia o paradeiro. Era mais do que um exílio: estava dias a fio sem dar sinal de vida. Nunca confessou onde se escondia: 

Para que querem saber do lugar onde hibernei se o que conta é o adeus derradeiro que querem dedicar a fulano?

Um dia, sob o efeito do entardecer banhado por um sortilégio, já as bebidas iam avançadas, falava-se de mundanidades. O Antunes não recusava as coisas mundanas quando todos falávamos de coisas mundanas – pois todos éramos, nem que fosse um pouco, mundanos. Desafiado a pronunciar-se sobre as frivolidades que desfilavam, como se fossem necessárias para demonstrar a nossa imensa e frágil humanidade, o Antunes afagou o copo semivazio e, naquele seu jeito desajeitado, balbuciou:

Dantes tínhamos a pretensão de sermos heróis. Esse tempo nunca deixou de ser uma miragem. Agora reificámos a nossa exclusiva fragilidade. Somos mais humanos, menos dados à glorificação pueril. Devíamos nascer com esta idade. Ou com a idade depois da morte, só para não sermos espetadores da nossa própria homenagem. Tenho a certeza que desaprovaríamos a nossa própria homenagem sem podermos intervir de viva voz. Se agíssemos assim, não deixaríamos que os outros fossem agiotas da nossa morte.

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