31.8.22

Se tivesse de responder ao Questionário de Proust sem ser como exercício de autocontemplação

Baleia Baleia Baleia, “Babes do Zodíaco”, in https://www.youtube.com/watch?v=3NB6CTOhsic

1. Qual a sua ideia de felicidade perfeita?

- A perfeição não existe. A felicidade é uma quimera vendida pelos gurus de autoajuda (esses máximos burlões).

2. Qual é o seu maior medo?

- Citando Alexandre O’Neil, “o medo vai ter tudo/tudo (Penso no que o medo vai ter/e tenho medo/que é justamente/o que o medo quer).”

3. Na sua personalidade, que característica mais o irrita?

- Impaciência. Ser muito exigente comigo.

4. E qual o traço de personalidade que mais o irrita nos outros?

- Narcisismo. E falsa modéstia (que são falsos antónimos).

5. Que pessoa viva mais admira?

- Manuel João Vieira. Iggy Pop. Adília Lopes. 

6. Qual a sua maior extravagância?

- É inconfessável.

7. Qual o seu estado de espírito neste momento?

- Desinspirado.

8. Qual a virtude que pensa estar sobrevalorizada?

- Resiliência. (Tenho uma incompatibilidade genética com o contexto semântico em que a palavra apareceu no léxico e no idioma.)

9. Em que ocasiões mente?

- Tenho a impressão que mentir não compensa, não tanto por ser antiético mentir, mas porque sou assaltado pela sensação de que ser mau mentiroso é facilmente detetável pelo destinatário da mentira. (Ou talvez a resposta seja uma meta-análise sobre a mitomania.)

10. O que menos gosta na sua aparência física?

- Vivo bem dentro do meu corpo. Quase como se fosse um Adónis. (Confrontar com resposta à pergunta número 4).

11. Entre as pessoas vivas, qual a que mais despreza?

- Sendo propenso à santidade e beatitude, o desprezo pelos outros não tem cabimento.

12. Qual a qualidade que mais admira numa pessoa?

- Sê-lo (pessoa). Resposta alternativa: simplicidade (exatamente o que não consigo atingir).

13. Diga uma palavra – ou frase – que diga com muita frequência.

- Não sou repetitivo e tenho uma imensa riqueza de vocabulário, dando-se o caso de detestar a rotina, a monotonia e a mesmice.

14. O quê ou quem é o maior amor da sua vida?

- A Ana.

15. Onde e quando se sente mais feliz?

- Com a Ana, a viajar, a ver teatro e cinema, concertos, e outras coisas inconfessáveis.

16. Que talento não tem e gostaria de ter?

- Para completar a tríade dedicada à Ana: dançar. (No que pessoalmente me diz respeito: tocar piano e falar russo e alemão – para ter o topete de rivalizar com os grandes clássicos da literatura e os grandes filósofos contemporâneos.)

17. Se pudesse mudar alguma coisa em si, o que seria?

- Nada. (O que – estou consciente – entra em rota de colisão com a resposta à pergunta número 1.)

18. O que considera ter sido a sua maior realização?

- Publicar uns livros; tentar ensinar umas coisas mais ou menos interessantes na universidade; os concertos de Idles, Ty Segall, LCD Soundsystem, Sigur Rós, Antony and the Johnsons, Pond; comer tarântula nas Seychelles; a paternidade; e amar. (E outras coisas inconfessáveis.)

19. Se houvesse vida depois da morte, quem ou o quê gostaria de ser?

- Uma não pergunta não é merecedora de resposta, por manifesta impossibilidade do postulado na pergunta.

20. Onde prefere morar?

- Em casa.

21. Qual o seu maior tesouro?

- Um tesouro pressupõe um segredo (estarei errado na conceptualização de tesouro?). Por aí indo, não tenho tesouros dignos de nota.

22. O que considera ser o cúmulo da miséria?

- A indigência não auto-detetada. O David Fonseca. O PS. O tipo das selfies.

23. Qual é a sua ocupação favorita?

- Escrever. Viajar. Música. Poesia. Teatro. Filosofia.

24. Qual é a sua característica mais marcante?

- Autoexigência. Permanente insatisfação com o mundo e os seus preparos. 

25. O que mais valoriza nos amigos?

- Sê-lo – e a paciência para me aturarem.

26. Quem são os seus escritores favoritos?

- É mesmo para ostentar a erudição? (Fico-me pela simples ameaça, em jeito de auto-genuflexão ilustrativa de falsa modéstia.)

27. Quem é o seu herói de ficção?

- Não há heróis.

28. Com que figura histórica mais se identifica?

- Aristóteles (remissão para a pergunta número 26).

29. Quem são os seus heróis na vida real?

- Não há heróis.

30. Quais os nomes próprios que mais gosta?

- Desdémona, Gertrudes, Hermengarda, Diógenes, Sófocles, Atanagildo, Esperança.

31. Qual o seu maior arrependimento?

- Não ter arrependimentos para inventariar. (Mas atenção à resposta à pergunta número 9.)

32. Como gostaria de morrer?

- Tenho a firme convicção que isso não vai acontecer. Assim como assim, se a minha convicção for desmentida, não estarei presente para o testemunhar.

33. Qual o seu lema de vida?

- “Oh captain, my captain...” (só para aborrecer os que respondem “carpe diem”).

30.8.22

Vantagem para o rapaz com calções vermelhos (short stories #409)

Pop Dell’ Arte, “Poppa Mundi”, in https://www.youtube.com/watch?v=gvDN2wBLCTg

          Que água é esta que vem à borda da boémia? Endereçou-se a pergunta ao árbitro (há sempre um árbitro algures, quase nunca imparcial). E o árbitro coçou o queixo enquanto pensava no assunto – era pior se assentasse o punho sob o queixo, naquela pose reflexiva e pesporrente que os candidatos a eruditos põem quando são convidados a aspirar a eruditos. O árbitro murmurou: “quem dá mais, neste leilão de vaidades?” Só os mais atentos conseguiram ouvir o murmúrio. A concorrência não estava garantida – e o árbitro sabia-o. Um observador exterior (talvez o narrador), sem nenhum interesse na causa a não ser a delimitação do conceito (como se estivesse a soldo de um dicionário), perguntou ao árbitro por que não arbitrava com lisura. O árbitro desconversou, enquanto fingia atender o telemóvel (moda em voga para quem não quer ser importunado num corredor ou num lanço de escadas). O eventual narrador desistiu. Por estas alturas, o sociólogo que habita em cada alma começaria a perorar sobre a natureza humana e a propensão para a má linhagem da espécie, mas uma imensa venda imaginária silenciou a análise amadora. A audiência aguardava a palavra resolutiva do árbitro. Numa jogada desconcertante – pois ao árbitro não é dado participar no jogo encenando lances –, proclamou sentença pouco convincente (atendendo às suas palavras trémulas): “vantagem para o rapaz de calções vermelhos”. Todos dirigiram o olhar em redor, para situarem o rapaz de calções vermelhos. Não correspondia ao código de vestuário dos presentes. O silêncio foi usado como gramática da perplexidade: como pôde o árbitro responder com esta não-resposta? Estaria sob influência de substâncias ilícitas? Horas depois, antes de se emprestarem à anestesia do sono, alguns entenderam a resposta do árbitro. As águas da boémia teriam delimitação em memória futura. Quando houvesse um rapaz de calções vermelhos a participar a boémia. 

29.8.22

E se Balzac fumasse cachimbo? (short stories #408)

Lisa Gerrard & Marcello de Francisci, “Exaudia”, in https://www.youtube.com/watch?v=JUvetP6BpPc

          Tanta era a fumarada que o ar se tornava irrespirável. Isto podia ser sentido há uns anos, antes de os fumadores terem sido proscritos do espaço público. Quem não se lembra de não poder incomodar um fumador que amesendava numa mesa do lado, para que a sua refeição não incomodasse o fumo do fumador? Agora reinventam-se obras literárias, expurgando as personagens que andavam com um cigarro ou um cachimbo a tiracolo. Se voltássemos atrás, talvez tudo pudesse ter sido diferente. Pediríamos aos nossos ancestrais, acusados do dolo da colonização, para não terem feito a extração de tabaco. Pedir-lhes-íamos para não terem a perspicácia de entender que as folhas de tabaco poderem ser fumadas (para além de mascadas, de onde não sobra grande pecado para a humanidade). Pediríamos – quem sabe? – para deixarem estar sossegadas outras plantas, para mal das conquistas lisérgicas e para bem de muitas mães. Em ato retroativo, poder-se-iam resgatar todas as vidas que foram levadas cedo de mais devido ao consumo de tabaco ou à exposição aos seus efeitos. Tudo à vontade dos novos hermeneutas, a quem seria atribuído o estalão dos tempos pretéritos para deles não se extraírem os sobressaltos que um passado mal resolvido açambarca. E não sabemos se teríamos de colocar um cachimbo no retrato de Balzac, pois não sabemos (sem adicionais pesquisas) se no tempo de Balzac os cachimbos já tinham sido inventados. O que sabemos, é que Magritte não seria sequer obra de arte por não poder ostentar o famoso cachimbo. Prosperem formas muitas de reescrever a História, para não se ofender o futuro com o seu legado. Ato contínuo, deixemos de ser vigilantes sobre a História, para ela deixar de ser uma apoquentação. Do estirador hodierno, a reescrita do passado. Eis a suprema aleivosia dos feitores dos novos tempos.

26.8.22

Aritmética cega (short stories #407)

Yeah Yeah Yeahs, “Zero”, in https://www.youtube.com/watch?v=pmGNo8RL5kM

          O estatístico profissional, contratado para fazer previsões no ministério, raras vezes acertava nos números. Não se incomodava. Primeiro, pagavam-lhe para essa função e não tinha culpa se os números desafinavam das suas previsões (normalmente por circunstâncias que nem fatores aleatórios podiam contemplar). Segundo, uma multidão apostava semanalmente na lotaria e noutros jogos de azar e confirmava-se, pela fecunda improbabilidade para sair o prémio gordo, serem jogos destinados a fermentar o azar. E que ninguém esgrimisse a teoria das probabilidades para mostrar a maior improbabilidade de acertar nos números nos jogos de azar do que nas previsões contratadas ao estatístico profissional. Ele costuma alegar, em sua defesa, “uma vez números, para sempre números” – e rematava com a explicação suplementar: sempre que há números em jogo, deixa de contar a teoria das probabilidades e passa a valer a probabilidade de uma teoria. Era como as borlas que conseguia no bar à saída do ministério: o barman era dado à cabalística e, sabendo que o estatístico profissional lidava com números, pedia conselhos sobre os números em que devia apostar. O estatístico profissional tinha consciência de fazer o papel do burlão, mas uma mentira piedosa é um mal menor em comparação com a verdade que faz condoer as suas vítimas. Assim como assim, as apostas do barmansó consumiam uma pequena parte do seu pecúlio. A tudo isto se juntava a consciência da falta de consciência do estatístico profissional. As borlas eram tão importantes como o são para a gente da moda que se faz passar por “influencer”. À medida que as borlas eram embolsadas, maior era o pecúlio contabilizado na sua conta bancária. Os números são ardilosos quando a consciência se dissolve perante a sedução da ambição sem medida. É uma aritmética cega, não sujeita ao formalismo matemático em que se adestrou o estatístico profissional.  

25.8.22

Sabes o que vale um restaurante quando vês o(a) cozinheiro(a) (short stories #406)

Max Richter, “Sarajevo”, in https://www.youtube.com/watch?v=cHzvokE7M4I

          De cada vez que amesendava num restaurante, um amigo tinha por prática plantar o olhar vigilante na cozinha. Só ficava satisfeito quando decifrava o chefe da cozinha. De acordo com a sua teoria, um restaurante devia-se aferir pela figura que está à frente da cozinha. A aferição é feita pela figura do chefe de cozinha, não pela qualidade das iguarias que prepara para a ementa do restaurante. Um dia, manifestamente inquieto, já a refeição ia em estado avançado (pronto para a sobremesa), espreitou pela janela e o olhar esbarrou numa gorda personagem envergando os paramentos típicos do chefe de cozinha. Um lugar-comum, espalhado no imaginário popular, é a obesidade militante dos chefes de cozinha (muito embora os contemporâneos, aqueles que envergam estrelas Michelin à lapela, sejam figuras esguias que contrariam o cânone – mas isso é por causa da frugalidade das doses servidas nesses restaurantes). A obesidade militante de quem comanda a cozinha de um restaurante é natural: quanto maior a qualidade dos cozinhados, maior a tentação para ir experimentando as iguarias à medida que são confecionadas, o que alimenta os corpos fartos dos autores desta gastronomia. Para o imaginário popular (assim encenado pela teoria do meu amigo), se vamos a um restaurante e damos conta da magreza do(a) chefe de cozinha, a comida ali preparada não é merecedora de confiança. Através desta teoria processa-se a inversão de um dogma estilizado pelos tempos correntes: são os magros que não pertencem à moda, aos obesos cabe o império do bom gosto. Não é preciso habitar nas prebendas do politicamente correto para o determinar. Para o meu amigo, a gastronomia está avant la lettre nas fundações que combatem o politicamente incorreto. A memória das aparências pode ser o ultimato das ilusões, abastecendo-as a preceito.

24.8.22

Imparcialidade (short stories #405)

Cage the Elephant, “Social Cues” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=pA5VS-Ae--g

          Não tinha estatuto: tudo era irrelevância, a começar na importância que imputava a si mesmo. Se fosse preciso, era capaz de jurar que a renúncia a um estatuto não era um recurso estilístico só para reivindicar um módico de atenção. Não era uma petição de princípio que pretendia obter o contrário do enunciado: não queria alcançar o avesso da irrelevância ao protestar, a seu favor, esse estatuto. Ficava tudo às claras. Não havia ninguém mais imparcial para a obtenção desse estatuto que era a antítese de um estatuto (se a definição de estatuto fosse aferida de acordo com os cânones). Não se livrava de uma inconsequência: um anti-estatuto não deixa de ser um estatuto. Todos temos um estatuto, ainda que queiramos que nos vejam nos antípodas de um estatuto. Diziam, em dissonância com a teoria que queria ser a sua marca registada, que não há imparcialidade que se anteponha num critério assim estilizado. Não é a atribuição de um estatuto de irrelevância, próprio de quem renuncia à sua importância, que serve de caução à imparcialidade. O ricochete das intenções desaprova o estatuto que se quer a antítese de um estatuto. Mesmo quando alguém propositadamente se menoscaba não pode arregimentar a imparcialidade a seu favor. Dizê-lo – “eu não tenho importância nenhuma – e dou-me bem com esta negação de estatuto” – prova a parcialidade que integra a intenção. Por mais que seja insinuado que se pertence ao escol dos não recomendáveis, alistando-se no património dos desexmplos, esse não é um farol de imparcialidade. Quando alguém se atira para o precipício onde se aviva a denegação de si mesmo, esse é um movimento de parcialidade. Pungente, eventualmente açambarcador de atenção alheia, como se a queda estrepitosa no fundo do precipício dê à vítima esse estatuto afinal por ele desejado. Ninguém é imparcial desta forma. 

23.8.22

A paisagem emudecida (short stories #404)

Dirty Three, “Indian Love Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=FMLQfJHJomE

          Os olhos amordaçados pelo sonho insubmisso mergulham no abismo onde manda a escuridão. E, todavia, o Verão empresta a claridade sem amarras, faz o dia soalheiro. A estrada desfila nos minutos que se seguem, consecutivamente. É o único som, o da estrada desenhada nos contrafortes de uma cordilheira, dado o sinuoso que se pressente. A curvatura do olhar fica pendente da venda que o dissolve numa incógnita. “Oxalá soubesse o destino da viagem”, murmura, com medo de que alguém o possa ouvir. E quem o poderia ouvir, se não sabe como foi feito passageiro de uma viagem que não tinha contratado? O rugir dos dispositivos supõe o estado da mecânica. São considerações acessórias. Se ao menos soubesse para aonde era a viagem e que paisagem poderia apreciar, talvez se levantasse o temível véu que ocupa o conhecimento. Talvez – e isto era o mais importante – alguém contasse por que a sua vontade era irrelevante. Não se diga que a liberdade respira quando a vontade é suprimida. Não se diga o mesmo quando a paisagem é escondida do olhar, como se fosse um segredo que importa resumir à negação de quem seria seu tutor. As mãos suam. Talvez seja do medo. Ou da saliva que seca na boca de onde se esperava que fosse manancial, remetendo a vontade para um verbo omitido pelo propósito de um qualquer algoz. Sente que a paisagem seria um dicionário inesgotável de prazeres para quem tanto se inebria com as sucessivas telas que acompanham o viandante. Mas tudo o que consegue pressentir é a paisagem emudecida. Os sonhos sem paradeiro têm essa linhagem. Desarrumam a mente, atirada sem contemplações aos vulcões iracundos, sem origem determinada, que fazem a questão de povoar o medo. Apostou que se acordasse do sonho, a paisagem começaria a falar com ele. 

22.8.22

Ricochete (short stories #403)

The Comet Is Coming, “Blood of the Past” (6 Music Live Room), in https://www.youtube.com/watch?v=tLCAE8JlYr0

          Não se diga da imprecisa dimensão do dia que não é moldura que caiba a qualquer um. Os oráculos deviam ser desmentidos, todos os dias. Como medida da silhueta do dia, são imprestáveis. A menos que um arremedo de sebastianismo se projete no futuro e, como dizia o poeta emblemático, só temos saudades do futuro. Com que propósito remexemos os despojos que vêm às nossas mãos? A herança das angústias havidas não providencia luminosidade sobre o tempo-destino. Quem deseja que o tempo por haver seja um ricochete do tempo que já teve a sua franquia? Historiadores de diversa cepa insistem (e não é por deformação profissional) que não somos dignos do tempo vindouro se negarmos um lugar ao conhecimento do passado. Podem os historiadores vindicar um quinhão de razão no imenso mapa em que se terçam os argumentos. Às vezes, é preciso fazer escolhas. Sopesar os diversos ângulos que se contestam e tirar a esquadria das recompensas e dos danos, visíveis ou invisíveis. E se, nessas vezes, a alma reivindicar a deslembrança do passado para que o tempo posterior seja fundeado numa âncora maior, acautelando o efeito ricochete do tempo pretérito, que seja vedado o protagonismo desse tempo. Pois a ninguém deve ser imposta a cédula do passado se ela deixar o selo da inquietação para memória futura. Ninguém deve ser confrontado com o imperativo do passado se ele tiver um lastro que hipoteque o tempo por haver. Devem ser desimpedidas as fronteiras do tempo sem o dorso arqueado pelo fardo do passado. Sem ser uma contingência que se deita sobre o futuro. Para que não seja refém de um tempo que teve existência, mas não volta a ser materializado. A não ser que se queira. A não ser que a aprendizagem seja uma palavra infundada. 

19.8.22

O pedal do meio (Niagara falls) (short stories #402)

Turnstile, “Blackout”, in https://www.youtube.com/watch?v=YtGRLKVzzdg

          Esse era o cisma: as águas torrenciais que se despenham no desfiladeiro – aquilo que a geologia denomina “quedas”, ou “cascatas” (se precisarmos da ajuda da poesia). Sobranceiro à queda de água, o cisma: e se o pedal do meio não funcionar? Era preciso dar um passo atrás na cronologia e perguntar que encorajamento haveria para meter a primeira velocidade e mentalmente ordenar o corpo a despenhar-se no desfiladeiro onde o som tonitruante da água em queda livre era o idioma? Queda livre: que bela metáfora e, todavia, tão descabida. A água despenha-se, livra-se da força de arrasto que a prende ao caudal e desafia a força da gravidade, livre então. Pinta um quadro terrivelmente belo. Belo e mortífero. Como não fez o trabalho de casa, não perquirindo em antecipação sobre a cascata, não sabia dizer se o desfiladeiro foi apeadeiro terminal para vidas que, a bem ou a mal, por ato suicidário ou como resultado de uma imprevidência, ali foram cessadas. Aí estava, a centímetros escassos do precipício, o vento misturado com as gotículas que vinham à superfície por entre o turbilhão assassino que mergulhava no abismo, de olhos, contudo, fechados, imerso no lugar inexplicavelmente sortílego. Era como se estivesse vestido da sua nudez e o pensamento caiado pela brancura que lhe devolveu uma virginal originalidade. A vida ganhara um sentido como nunca fora dado a entender. Os pés podiam vincar-se na firmeza possível, como se fossem o pedal do meio a acionar um travão. Não era o caso. Sentia que levitava, estrangulando o medo que, noutros preparos, o teria impedido de se situar no limiar do precipício. Saiu da queda de água a saber que os travões mentais precisam de ser desafiados. Esse é o equinócio necessário de que rumoreja a avidez da mudança. 

18.8.22

Exportação cultural

Santigold, “L.E.S. Artistes”, in https://www.youtube.com/watch?v=ciJDA0tcQfs

Corria o ano 2000 quando em Oxford Street, Londres, vi jovens japoneses (ou de outra nacionalidade asiática – que seja perdoada a indeterminação pelos mecenas da patrulha dos bons costumes) com cabelos pintados de cores variegadas. Presumi que fosse um modismo regional e não levantei outras questões. Questões que, eventualmente, seriam levantadas se o facto tivesse sido testemunhado vinte anos mais tarde, sob o ângulo de análise de uma antropologia cultural reinventada. Perguntar-se-ia se seria admissível os jovens japoneses fazerem apropriação cultural de algo que era (na altura) típico dos jovens ocidentais. Não o fiz na altura (a questão não tinha nascido) e não o faria hoje.

Podemos dar um salto no tempo, até à atualidade. Perto do sítio onde vivo há uma comunidade de angolanos abastados. Antes que um zeloso membro da patrulha que nos tutela arremesse um objeto argumentativo contundente na minha direção, quero que fique estabelecido que os angolanos têm o direito a subir na vida como acontece com qualquer pessoa, independentemente de nacionalidade, raça, credo ou orientação sexual (ou, vá lá, ideologia). Não vou indagar sobre a origem da fortuna – e digo-o sem qualquer laivo de ironia e sem agendas escondidas, pois o que é do foro da suspeita (de tantos que se insurgem contra os oligarcas angolanos) não passa desse foro. 

Os adolescentes dessa comunidade só vestem roupas de marcas luxuosas. Outra vez, para não ficar à mercê dos que quiserem atirar contra mim o opróbrio do racismo estrutural, digo-o com toda a clareza: os adolescentes em apreço têm o direito de se vestir como bem entenderem. E não será o facto de envergarem vestuário e calçado dispendiosos, que não tenho no meu guarda-roupa, que irá detonar a inveja. (Não contribuo para as marcas registadas que sobem aos tops da moda.) Ora, segundo os delatores da apropriação cultural, a pergunta que se impõe é a seguinte: não estarão esses adolescentes a vestir o avesso da sua idiossincrasia cultural ao cederem perante a sedução, estética ou meramente jactante (consoante os gostos), de marcas que são um símbolo do mundo ocidental e do capitalismo? É que se uma branca não pode usar rastas pelo pecado capital da apropriação cultural, não se aplicará a mesma sentença aos adolescentes angolanos que ficam extasiados com roupa e calçado e adereços de marcas de luxo?

(Concedo: os exemplos atrás apresentados são representações excessivas dos argumentos que interessa esgrimir quando as acusações de apropriação cultural assomam à superfície. São exemplos, apenas, usados contra a imperatividade dos que se opõem ao que consideram ser casos de apropriação cultural. Para exemplos radicais, exemplos radicais com uns pós de excesso, para apimentar a discussão.)

Incomoda-me a posição em que se colocam os críticos da soi-disante apropriação cultural. Aceito os pressupostos que alimentam o seu argumentário. Posso não concordar com eles, mas aceito-os como o mar de fundo em que laboram. Não consigo aceitar o demais: os imperativos categóricos denotativos do entendimento enviesado de liberdade e os resultados da linha argumentativa. Eis porquê.

Por um lado, a forma como articulam os argumentos é a expressão de um entendimento de liberdade enviesada. Um branco não pode usar rastas porque se apropria de um elemento cultural que não corresponde à sua cultura (como se fosse possível arregimentar brancos e negros numa homogeneidade cultural...). Esse branco perpetua o racismo sistémico. E ainda que o branco que decidiu ornamentar o cabelo com rastas alegue, em sua defesa, que é uma homenagem a um negro (ou à negritude), o argumento é recusado porque os supremos julgadores são insensíveis à manifestação de vontade do infame branco e adivinham o que vai no íntimo do branco. Chamam mentiroso ao branco, num julgamento sumário e com irrelevância do contraditório. Se pudessem – ou seja, se o poder político lhes tivesse sido investido – proibiriam esta, e qualquer outra, manifestação de apropriação cultural. Para além de atropelarem a vontade e a liberdade de quem acusam, os zelotas que combatem a infâmia da apropriação cultural têm dotes de adivinhação para intuírem estados de alma alheios. 

Por outro lado, as consequências desta cruzada remetem para um cenário datado e paradoxal. Quem esgrime o fantasma da apropriação cultural acredita, em primeiro lugar, na homogeneidade cultural. Segundo, confinam a guetos as diversas matrizes culturais, ou raciais, ou étnicas. A segregação não é consentânea com a miscigenação cultural que é um traço indelével do tempo presente. (Sosseguem os cruzados anti apropriação cultural: não evoco os descobrimentos portugueses ao mencionar a miscigenação cultural.) É uma mundividência datada, porque negada pela ciência.

E é uma mundividência paradoxal, porque – independentemente da grelha pela qual seja lida a globalização das gentes – acantonar culturalmente determinados grupos trava o conhecimento do outro. As culturas ficam mais ricas quando se abrem à influência de outras culturas. Não tinha estes ativistas na conta de militantes do nacionalismo serôdio. Ou os que patrocinam a causa que se opõe à apropriação cultural dão para o mesmo peditório dos que afixaram uma faixa num viaduto no Porto com a seguinte proclamação: “salvem os povos indígenas”? Às vezes, e cada vez mais, os extremos não se reprimem um ao outro.

Toda esta discussão está contaminada à partida. Até pela categoria operativa usada. Em vez de se falar de apropriação cultural, com a carga negativa associada, dever-se-ia rebater esta categoria através da lógica da exportação cultural. Exportação seria denotativo da fusão de diferentes culturas e sempre na condição de ser um processo volitivo dos agentes envolvidos. 

Talvez seja este império da escolha, esta liberdade irrenunciável, que tanto incomoda os perseguidores da apropriação cultural.

17.8.22

Desde a torre de menagem (short stories #401)

Pixies, “Vault of Heaven”, in https://www.youtube.com/watch?v=csTJW6A1174

          Ia a dizer “homenagem”, mas dei conta que estava preso na torre de menagem. Uma prisão voluntária, um cataclismo pessoal: em vez de “dar o corpo às balas” (no lugar-comum de que o povo é autor), enredei-me num exílio que soará a covardia. Mas as pessoas são como são. Ninguém me perguntou o que penso da afoiteza, se a considero digna da melhor linhagem humana. Veja-se o exemplo dos heróis que prescindem de si mesmos e (outra vez o lugar-comum) “entregam o corpo às balas”, sendo figurantes numa guerra em que nem sabem o que está em causa. O povo chamar-lhes-ia, com a sua tendência para a banalização semântica, “carne para canhão”. Este é o desiderato dos heróis? Prefiro, em metódica alternativa, empreender uma fuga para o interior de mim. Para um lugar longínquo, mesmo que fisicamente perto da sede dos problemas. A torre de menagem é um santuário, a avenida do exílio necessário. O lugar onde as palavras vãs são depuradas. É na torre de menagem que se confirma que as palavras loucas não chegam ao céu (no caso, à altitude irrepreensível da torre de menagem). Ao ser entronizada como santuário, uma certa beatificação levita como odor limítrofe da torre de menagem, influenciando as atitudes consequentes. A torre de menagem é a circunstância adequada para aquelas bofetadas que não agridem – encarnando o povo mais uma vez, as bofetadas de luva branca. Ou seja, uma certa beligerância desprovida de armamento pesado, pois uma luva branca, sem a mão por seu corpo, não é agressão que faça mossa. Por isso, não há lugar a homenagens na torre de menagem. O isolamento medicinal não deixa ver os outros. (E, assim como assim, a radialista que de si tem uma imagem cumeeira confessou desconhecer a expressão “velha Albion”.)

16.8.22

Tinta permanente (short stories #400)

The Blaze, “Territory”, in https://www.youtube.com/watch?v=54fea7wuV6s

          “Há palavras que merecem ser imorredoiras. Essas, têm de ser escritas a tinta permanente”. Eu discordava. Não é a tinta permanente que sela as palavras intemporais. Se as páginas forem rasgadas, ou perdidas nos destroços do futuro, não é a tinta permanente que salva as palavras. Ou se, depois de extinto um fogo, o espólio da tinta permanente foi consumido pelas chamas intransigentes, o que sobra das palavras? Disse: “não é a tinta permanente que serve de caução. É a sua genealogia, o ficarem embebidas na carne de quem as escreveu e de quem as leu. A tinta permanente é um ornamento. Não é uma garantia.” Exibiu um esgar de desconfiança, muito provavelmente ia discordar: “nem que esteja a falar com a intermediação de uma metáfora?”, disparou, sem demora. Os ruídos ficam por conta do papel onde as palavras foram arrematadas. Se as páginas forem amarrotadas, o estrépito descompõe as palavras. É indiferente terem sido debruadas a tinta permanente. Insistiu: “e a elegância do texto, não conta? As palavras assim escritas sobem de tom pela caligrafia cuidada. A forma empresta-lhes algum conteúdo.” Não estava convencido. A tinta permanente só é de nome. Se as palavras vertidas através dela ficarem expostas à luz diurna, a tinta depressa se contraria na sua linhagem. Desmaiada a tinta permanente, esmaecem as palavras que são apenas uma silhueta, um esboço ininteligível do texto original. Desviei a conversa: “importa tanto saber que há palavras que têm a tinta permanente como moldura? Interessa tanto saber que há palavras imorredoiras?” O silêncio apoderou-se do palco. Demorou-se. Talvez o silêncio fosse orquestrado a tinta permanente. O silêncio não se escreve nem se apaga, mesmo que palavras imarcescíveis sejam contadas na obliteração do silêncio. O silêncio, até quando é atropelado, conserva o seu lugar cimeiro. Ele é o depósito da tinta permanente.  

15.8.22

Monólogo (short stories #399)

Moderat, “Les Grandes Marches” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=0E-HnBUGWEw

          Procuro um lugar para o empréstimo de identidade. Não é ensimesmar; cuido apenas do elevado estatuto da exigência, que começa por dentro de mim. Colho almadamente as sementes que se avivam no fiorde onde o sol se renova. Embebo as palavras no avulso dos poemas que se ungem na memória. Se não recuso os dias fortuitos, por que hei de protestar as constelações de onde procede a luz proverbial? Serão os jardins, os rios que esculpem o caudal entre as rochas obstinadas, as pessoas militantemente anónimas que superam qualquer notável sem se ficar a saber, as pontes que são o estuque dos diferentes lugares, os rostos avinagrados pelas rugas, a idade sem bilhete de identidade, os lugares desconhecidos que perdem essa linhagem, as diferentes camas de hotel que já foram hospedaria de sabe-se lá que gente – tudo amontoado num arquivo de memórias do futuro, como se na exiguidade da tela fosse possível desenhar a inteireza da constelação dos sentidos que desfilam na passadeira do tempo. E penso: todos aqueles fragmentos, e muitos outros que seriam inventariados por outras pessoas, são a cidade em que medra tanta a gente que a habita. Não há originalidade no esboço. Não há, porventura, originalidade na idiossincrasia que me desidentifica com as possíveis pertenças. Os efeitos banais dos dias sucessivos acumulam-se na pele que é atravessada pela dissipação em forma de rugas. O pressentimento da decadência é um vulto que esbraceja, como bandeira bandida que não cessa de transgredir o olhar forçado a deixar de ser servilmente inquisitório. A transfiguração é o modo de fazer acontecer vida. Desestimá-lo é uma ilusão que se consome no dorso do fingimento. Envelhecer não é um custo; é o preço de sabermos que fomos admitidos a esse cais. Ao menos, a música resiste ao insidioso apelo da decadência.

12.8.22

Não me peças gramática (short stories #398)

Nils Frahm, “Re”, in https://www.youtube.com/watch?v=ScUP6MKmXpg

          A linhagem dos honrados ensina as boas lições. Aparentemente, devíamos ser todos bons alunos. Sabemos não ser o caso. Sabemos, por experiência própria, não ser o caso. Deixamos que o idioma do hedonismo seja língua-franca. Prescindimos de convenções. Desagradamos aos cultores dos costumes (e nem se fala dos bons costumes, apenas de costumes). E, todavia, sabemos o que significa consuetudinário. Se estradas houver que fujam às paisagens lineares, essas são as que trazemos para o mapa. O enredo não se compõe de palavras insalubres. Não arremata os laivos de esperança que adejam nas bandeiras maioritárias, aqueles que enfeitam elocuções ostentosas e gongóricas. Preferimos a lonjura, o propositado critério que se evade das águas aplacadas. Se nos dizem que há regras por cumprir, perguntamos por peças de teatro, por paisagens escondidas, pelos ultrajes que estão à espera de ser esconjurados, sem propósito nenhum. Nadamos até ao vértice do tempo e agarramos as nuvens que se insinuam entre os dedos. Aprendemos com a matéria-prima de que somos escultores. Os gatos sabem do que falamos. Seus são os olhos ávidos que folheiam as páginas da candura. Nosso, o eflúvio que se eleva na formatura das palavras, nos olhares descomprometidos que podiam aspirar a compêndios, se esse fosse o caso. Pegamos nos estilhaços da memória e congeminamos a fuga. Para dentro de um labirinto onde juntámos, à força das palavras cúmplices, a argamassa que inventariou as demais paredes. Hoje, somos uma cidade inteira. Cuidamos do levantamento topográfico dos nossos corpos que se juntam no ocaso que é sempre uma jura. Tomamos o desfiladeiro que vem depois entre mãos, tão confiantes que dispensamos o arnês. Prosseguimos, sem sabermos da finitude do tempo. A estalagem que nos espera é o vazio, esse pedaço de geografia que podia ser crismado com os nossos nomes – se esse fosse o caso. 

11.8.22

Os relógios desacertados (short stories #397)

The Limiñanas, “Art Rock” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=GyoNufvLLf8

          Esta é a corveia dos apressados: o maneirismo constante do olhar que consulta o relógio. É preciso saber se estamos atrasados. Porque não podemos estar atrasados. Esta tirania emudece a qualidade de vida. Como se diz no adágio, andamos a toque de caixa – só que a caixa é um eufemismo dos relógios, por sua vez os testes-de-ferro do tempo que nos silencia a vontade. Houve em tempos um sonho: os relógios perdiam o equilíbrio e deixavam de ser bússolas fidedignas do tempo. Se fossem consultados cinquenta consecutivos relógios, veríamos cinquenta diferentes medidas do tempo. Ninguém saberia da hora rigorosa. Como se de um fuso horário difuso se tratasse, com a diferença de a diferença não se aferir apenas pelo ponteiro das horas, que a divergência se pautava sobretudo pelo ponteiro dos minutos. O sonho prosseguia os seus termos: podia ser que este fosse o pretexto para nos emanciparmos da tirania do tempo. Para não haver horas marcadas e para deixar de existir a mal-afortunada pontualidade britânica. (Ficava por saber se esta alteração dos termos contratuais seria um punhal engastado, e bem fundo, na carne da idiossincrasia britânica.) De acordo com o sonho, deixaríamos de ter a caução do tempo como mandante da vontade. Ninguém estaria atrasado. Ninguém estaria a tempo. O tempo deixaria de ser uma convenção. E fruíamos todos de uma liberdade prestigiada pela curadoria da vontade. O sonho iludia os custos que a desautorização do tempo podia ter para a organização social. De acordo com o sonho, não importava. Os benefícios superavam as contrariedades. Talvez fosse tempo de eliminar o tempo enquanto constrangimento. Passaria a ser uma mera medida indicativa, sem capacidade para embaraçar ninguém. Podia ser que todos os relógios perdessem serventia. E os que teimassem, podiam ser que perdessem validade. Por manifesta irrelevância. Seria mau para os colecionadores de relógios. E para os amantes do tempo.


10.8.22

Quarteirão (short stories #396)


Max Richter, “Sleep” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=xuokTiBueNM

          Os idiomas teciam-se no fio fino que emparedava o labirinto. As pessoas não falavam os idiomas outros. Não precisavam. Tinham sangue e carne e ossos e sentiam coisas semelhantes, sem a tradução dos idiomas. Nesse quarteirão, uma amostra do mundo. Era como se todas as paredes fossem a filigrana que espelhava o lugar não recôndito em que se acolhiam as pessoas. Não medravam nas diferenças. Reconheciam-nas; as diferenças eram apenas o aviso cautelar da sua riqueza. No quarteirão, ninguém queria chamar a si a infâmia de um estatuto superior. Houve quem o tivesse tentado. Sabendo-se fora do lugar, deixados no lugar ingrato de párias, o único remédio que tiveram foi a ausência. Aquele quarteirão não era o lugar onde podiam basear uma pertença. Não foram a tempo de perceber que a colonização dos outros não tem lugar nos tempos estes. Pois este é o quarteirão que torna todos iguais sem uma só voz entoar a igualdade como princípio imperativo. Se os corredores do labirinto fossem as estradas que compõem a geografia do quarteirão, seriam feitas de veias compósitas e o sangue nele veiculado uma amálgama dos sangues vários das pessoas tão diferentes umas das outras. Todas as linhagens exibiam a diferença como pertença, em vez de anátema, em vez de a diferença ser tida como tal, uma mera e, todavia, quintessencial diferença. A diferença não chegava a sê-lo, mesmo que todos a notassem e nela se embebessem como raiz quadrada de uma pluralidade. Ninguém precisava de escolas para aprender a saber dos outros como fator da sua pertença. Os dicionários resumiam-se a um punhado de páginas. As outras palavras, as que ficavam de fora, tinha-as o quarteirão por adquiridas. Todos sabiam que, à força de o deixarem de ser, tinham sepulturas em que seria o mesmo o idioma em forma de silêncio. 

9.8.22

A prescrição da História (short stories #395)

Pale Blue Eyes, “Globe”, in https://www.youtube.com/watch?v=BGoD-xQxyNc

          Não tinhas medo de saltar para a parte da piscina onde não há pé. Mal sabendo nadar, mas não tinhas medo. Protestavas, com veemência, contra a hipoteca dos sentidos, um garrote que se afivela na liberdade (que dá sentido à vida). Não querias saber dos avisos do passado. Acreditavas na História; mas acreditavas mais na autonomia do ser, na capacidade para sair da opacidade e se transfigurar num avesso promissor. Não te dissessem que há cimentos preparados para a consistência quando a estabilidade parece ser a roda-morta que nos ampara. Não te dissessem que temos de ser precatados, sempre com o lenço da História a adejar sobre a disponibilidade mental. Não querias que da História sobrasse uma reserva mental que hipoteca a História escrita no futuro. Se assim fosse, não te arrependerias de propor a prescrição da História (não no sentido literal, para os ofendidos se desenfastiarem). As duas texturas do tempo fundiam-se. Que ninguém supõe ser alguém se obliterar o passado, não passa de um lugar-comum. Outro tanto não se pode dizer da História como umas algemas imorredoiras. Não querias deixar de ser o que serás no futuro apenas por ação (destrutiva) da descaução do passado. O futuro é como aquela parte da piscina em que não tens pé, sabendo que continuas a ser fraco nadador. A improvisação tem o seu lugar na gramática onde se movem as peças que importam. A improvisação traduz-se em transgressão, onde não há lugar ao medo. Poderás continuar a ser temerário, ousando mal nadar onde não tens pé. Não capitulas. Qualquer um se agiganta desde a fundura das suas fragilidades. Uns, desembaraçam-se e conseguem manter-se à tona. Outros, fazem das tripas coração e crescem, crescem tanto que a piscina deixa de ser um lugar onde não têm pé. 

8.8.22

Exílio (short stories #394)

Ty Segall, “Hello, Hi”, in https://www.youtube.com/watch?v=u9-NIR3B_V4

          As vassouras esconjuram conspirações. Não se intimidam, os espíritos que se ocupam da sua atalaia. Se em vez de noite houvesse praias bucólicas, onde as almas se despojassem dos escombros que as inquietam, os dias seriam uma jornada abonançada. Só que as naus não asseguram as marés tranquilas que se prometem em sonhos. Em sonhos afinal miríficos. Talvez este seja um mar órfão. Um mar que não contempla os sonhos chãos e pede exílio. As almas sobressaltadas espelham o crepúsculo que as cerca: é como se houvesse apenas noite e a geografia só tivesse verbos de sombras (um longo inverno ártico). Sobra o exílio como possibilidade. Um outro mapa, onde o palco seja desconhecido, o idioma ininteligível, e a pura estranheza tome conta das veias enquanto o coração acelera perante a hipótese de angústia.  As pessoas dizem que ninguém muda de lugar sob o espectro da leviandade. E se a mudança medra no ímpeto da evasão, porque o lugar nativo deixou de ser hospedagem aceitável, tudo se descompõe por dentro. Tudo fica à mercê da contingência, e a contingência é uma possibilidade que ninguém consegue domar. O exílio é o aval para a faculdade da redenção de si. Nem que seja longe do lugar onde se cimentou a pertença, agora desfeita a uns meros vestígios que apenas se aparentam com o seu sentido original. O exilado procura ser alguém por fora da sua pele. Procura uma pele diferente. Num lugar incógnito, um mapa feito de indeterminações. Foge-se de um lugar que deixou de ser estalajadeiro. Essa pertença fica reduzida a escombros. Os estilhaços são recolhidos como remédio virado para o porvir. O exilado não desiste do futuro. Por isso é que se constitui exilado, na solenidade de quem desistiu de acreditar num presente e investe num, todavia incerto, futuro.  

5.8.22

Centavo (o magnata emergente vai ao espaço)

David Bowie, “Space Oddity”, in https://www.youtube.com/watch?v=iYYRH4apXDo

Ilustre, o magnata, vai subir por dez minutos ao espaço. É hoje. Os jornais gostariam de saber quanto custou a excentricidade. Muito do povo, invejoso, atira para cima do magnata o opróbrio da excentricidade. 

Mas quem tem a ver com o dinheiro do poderoso e influente magnata? Eu queria ir ao espaço, pagando a eventual, mas não divulgada, fortuna para o efeito? Não. Teria outras finalidades para essa fortuna, que não me apetece revelar. Muito do povo invejoso – entre o qual se contam: mesquinhos que treinam a pior inveja dos que militam na abastança; outros que não têm problemas de solvência material, mas que medram na inveja dos que se situam mais acima do ranking destas mundanidades; e gente vacinada pelo dogma da ideologia, adestrada nos vitupérios sobre os ricos – usaria uma hipotética abastança para dar corda às mais variadas excentricidades. 

É legítimo que assim sonhem. Tão legítimo quanto o boçal aspirante a astronauta amador pagar uma não divulgada fortuna para fazer um tão efémero tirocínio espacial. Deixá-lo ir. Deixá-lo usar um quinhão da sua riqueza para uma excentricidade. Quem não for dado a excentricidades, mesmo daquelas que dispensam um balde de dinheiro, que atire a primeira pedra. Alguns dirão, a favor das suas reservas mentais, que o emergente magnata é um vaidoso da pior cepa e que a tão breve incursão no espaço é só mais uma manifestação da sua ostentação – e as ostentações são enervantes. O prisma está errado. Faz algum mal o magnata passar um com certeza avultado cheque para ter um cheirinho do espaço? Dirão, outra vez em desacordo, os mais críticos: é só para o indivíduo exibir a sua superioridade sobre o comum dos mortais, ele lá cima, brevemente no espaço a ostentar a posição hierárquica ainda mais superior a todos nós, aqui em baixo, tão submissos. 

Não se cansem com a retórica. O indivíduo passa os dias a ostentar essa condição e não tem os pés num mapa sideral.

4.8.22

Apartado 34 (short stories #393)

The Limiñanas & Areski Belkacem, “La Musique”, in https://www.youtube.com/watch?v=7TgoYhO0mHg

          Era o mote: a indiferença resistia ao movimento gregário da espécie. No cômputo global – como os contabilistas gostam de dizer – preferia ter um esconderijo como morada. O carteiro não precisava de inventariar a correspondência que lhe era destinada. Escolheu um apartado. O apartado 34 – foi o número distribuído. Se subisse a um promontório de onde arrematasse uma visão de conjunto das coisas todas, saberia que a fuga interior investe contra a maré dominante. Contra o voyeurismo do avesso, que começa pelo próprio e se projeta para fora do seu perímetro, como quem convida os outros a serem o auditório da sua própria vida. Há dias, ouviu o carteiro a comentar a correspondência da vizinha do segundo esquerdo. Ficou incomodado por ela. (Mas ela exultava com a intrusão, não reconhecida, do carteiro.) O imaginário popular que atira a coscuvilhice para os ombros das porteiras tem de ser revisto, somando os porteiros que espiolham a correspondência que distribuem. Ele não conseguia lidar mais com a hipótese de intrusão. Daí, o apartado 34. Meses depois, ao cruzar-se com o carteiro, este comentou, com uma apimentada dose de curiosidade, que já não recebia correio em seu nome há muito tempo. O carteiro cuspia sal sobre uma ferida aberta; de certeza que o carteiro sabia que o morador do terceiro direito era titular do apartado 34. Para fugir da resposta, simulou um telefonema acabado de receber e que não podia deixar de atender. Arrependeu-se. Se não se escondesse do desassombro, se a voz não ficasse trémula quando a discordância fala de viva-voz e a crispação sobe ao mapa, exortaria o carteiro a cuidar da sua vida. Daí para a frente, evitaria sair ou entrar no prédio à hora da distribuição do correio, para prevenir males maiores. E cuidaria, com o cuidado merecido, do apartado 34. 

3.8.22

O jasmim (short stories #392)

St. Vincent, “Piggy”, in https://www.youtube.com/watch?v=elWnXuYPjeY

          De acordo com a florista, os homens não devem usar calças amarelas. Perguntou porquê. Começou por um “porque sim” e, perante o silêncio do cliente, porventura inquisidor, ou apenas perplexo, completou: “o amarelo não combina com os homens, parece-me uma cor mais feminina.” O cliente esperou que dissesse apenas que tem um preconceito geral contra o amarelo (só para corroborar o adágio sobre o amarelo e a impossível unanimidade). O assunto morreu por ali. Lá fora ouvia-se uma britadeira. A florista parecia habituada ao ruído, como se fosse uma banda sonora a atravessar os dias. Ela perguntou, como se sentisse a necessidade de devolver uma pergunta, para ficarem empatados na auscultação das preferências pessoais: “qual é a sua flor preferida?” Foi assunto que nunca passou pelas elucubrações do cliente. Gostava de flores como quem obtém vencimento de causa na estética, ao sopesar o belo que desmente as parangonas do pessimismo que se abate sobre o planeta que nos calhou em sorte (ou em desdita, se tivéssemos de fazer coro com os pessimistas de serviço). “Gosto muito de jacarandás”, foi a primeira hipótese que povoou o pensamento assim que o desafio da interrogação chegou aos ouvidos. Não demorou a ser informado que a resposta tinha sido ao lado: “um jacarandá é uma árvore...” Para não dar parte de fraco na botânica, esgrimiu em sua defesa que os jacarandás também florem e que são as flores do jacarandá que constituem a sua preferência. Para continuar a não dar parte de fraco, sem interrupção informou que “também gosto do jasmim”. “O jasmim”, como os afamados chefes de restaurantes, que adicionam o artigo definido “o” ao ingrediente principal – “o tamboril”, por exemplo, pois não é um tamboril qualquer, anónimo e indiferente, é aquele tamboril, “o tamboril” que quem amesenda vai delibar. E a florista, entendendo a subtileza, perguntou, enquanto apontava para a sua esquerda, se era aquele jasmim o da sua preferência.

2.8.22

Ludismo (short stories #391)

 

The Stranglers, “No Mercy”, in https://www.youtube.com/watch?v=7GndSz_0fB8

          Mandamento sem número atribuído: farás uso de palavras de entendimento corrente. Deixarás os ímpetos gongóricos para os que se atrevem a deambular pelo vocabulário hermético e a gramática emaranhada. A menos que, em rejeição do que peticionas, escorregares para a antítese do que te propões. Não percas o fio à meada – nem sucumbas à tentação da complexidade e dos étimos que têm sede de dicionário. A escrita é um exercício lúdico. Uma tábua de salvação contra o resto do tempo em que tens de mergulhar em torres de Babel e abrir caixas de Pandora. Mas subir a uma torre de Babel pode conter a sua própria adrenalina. Abrir caixas de Pandora pode ser edificante, um desafio atrás do outro como se fossem matrioskas. Às vezes, o jogo alimenta-se de palavras: umas vezes, de como se encaixam umas nas outras à mercê da sua musicalidade; outras vezes, o exercício lúdico serve-se de palavras cruzadas como se fossem a tradução de figuras de estilo. As palavras não precisam sempre de um sentido literal. Podem ser um alistar de vocábulos que se entrelaçam sem terem afinidade aparente. É preciso ir buscar o seu sentido umas frases à frente, deixando o seu sentido em sentido pelo tempo que for necessário. Matéria-prima de quimeras, fermento de sobressaltos contrariados, alavanca de sentimentos que exigem moldura própria; escrever, usando um estojo versátil que abarca as cores oferecidas pelas imensas possibilidades. É como deparar com uma porta fechada e não precisar de uma chave para a franquear. A serventia de abrir janelas é a pedra de toque que se espera. A sala aformoseia-se na diligência do critério. Não precisa da linhagem do produto dado à estampa para ser garantia da estética que valida a sala. Não se esperem labirintos se o texto se enraizar nesta cofragem. 

1.8.22

Em cima da meta (short stories #390)

Thievery Corporation, “Until the Morning”, in https://www.youtube.com/watch?v=hpoI6pv3rIQ

          O pesadelo aferido pelo marégrafo: numa floresta-labirinto, verte-se o ciciar dos vultos na noite demorada. O corpo avança. Não sabe para onde vai. Segue, apenas, pressentindo ser essa a ação para o libertar do jugo dos vultos que o perseguem. Parece um jogo do gato e do rato. Um perseguidor e um perseguido. Aquele não consegue chegar às imediações deste. No papel de perseguido, teme que deixe de haver território entre os dois. Teme ser aprisionado. Não sabe quem o persegue. Não consegue arrotear as funções que poderiam habilitar a caçada. Sabe que não é vitualha da podridão. Quanto aos costumes, a dilação não o coloca fora da média. Tudo isto atravessa o pensamento sem deixar de percorrer os caminhos herméticos da floresta-labirinto. A seu favor, a noite aproxima-se do ocaso. Intui que os vultos serão devolvidos à coutada quando a primeira luz clara começar a depor a noite. Tropeça, a certa altura, numa raiz de árvore dissimulada sob os despojos do outono. O ciciar dos vultos não ficou mais próximo; extinguiu-se, por uma brevidade – essa é a desconfiança que o percorre. O passar do tempo, aproveitado para resgatar forças que a demorada noite exauriu, confirmou a extinção dos vultos. Continua a desconfiar. Por que maré propícia os vultos cessariam a perseguição? Terão sido informados que o labéu que sobre ele pendia era indevido? Se calhar, foi o derribamento inopinado que invalidou os vultos. A raiz da árvore escondida sob os escombros do outono foi um trunfo a seu favor. Os vultos terão continuado a demanda, aproveitando a boleia da noite. A sua hipocrisia é como a luz do dia para os albinos. Ele, de repente, deixou de ser presa e passou a ser indiferente. Mesmo em cima da meta, como atesta a configuração da manhã.