4.8.22

Apartado 34 (short stories #393)

The Limiñanas & Areski Belkacem, “La Musique”, in https://www.youtube.com/watch?v=7TgoYhO0mHg

          Era o mote: a indiferença resistia ao movimento gregário da espécie. No cômputo global – como os contabilistas gostam de dizer – preferia ter um esconderijo como morada. O carteiro não precisava de inventariar a correspondência que lhe era destinada. Escolheu um apartado. O apartado 34 – foi o número distribuído. Se subisse a um promontório de onde arrematasse uma visão de conjunto das coisas todas, saberia que a fuga interior investe contra a maré dominante. Contra o voyeurismo do avesso, que começa pelo próprio e se projeta para fora do seu perímetro, como quem convida os outros a serem o auditório da sua própria vida. Há dias, ouviu o carteiro a comentar a correspondência da vizinha do segundo esquerdo. Ficou incomodado por ela. (Mas ela exultava com a intrusão, não reconhecida, do carteiro.) O imaginário popular que atira a coscuvilhice para os ombros das porteiras tem de ser revisto, somando os porteiros que espiolham a correspondência que distribuem. Ele não conseguia lidar mais com a hipótese de intrusão. Daí, o apartado 34. Meses depois, ao cruzar-se com o carteiro, este comentou, com uma apimentada dose de curiosidade, que já não recebia correio em seu nome há muito tempo. O carteiro cuspia sal sobre uma ferida aberta; de certeza que o carteiro sabia que o morador do terceiro direito era titular do apartado 34. Para fugir da resposta, simulou um telefonema acabado de receber e que não podia deixar de atender. Arrependeu-se. Se não se escondesse do desassombro, se a voz não ficasse trémula quando a discordância fala de viva-voz e a crispação sobe ao mapa, exortaria o carteiro a cuidar da sua vida. Daí para a frente, evitaria sair ou entrar no prédio à hora da distribuição do correio, para prevenir males maiores. E cuidaria, com o cuidado merecido, do apartado 34. 

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