O estatístico profissional, contratado para fazer previsões no ministério, raras vezes acertava nos números. Não se incomodava. Primeiro, pagavam-lhe para essa função e não tinha culpa se os números desafinavam das suas previsões (normalmente por circunstâncias que nem fatores aleatórios podiam contemplar). Segundo, uma multidão apostava semanalmente na lotaria e noutros jogos de azar e confirmava-se, pela fecunda improbabilidade para sair o prémio gordo, serem jogos destinados a fermentar o azar. E que ninguém esgrimisse a teoria das probabilidades para mostrar a maior improbabilidade de acertar nos números nos jogos de azar do que nas previsões contratadas ao estatístico profissional. Ele costuma alegar, em sua defesa, “uma vez números, para sempre números” – e rematava com a explicação suplementar: sempre que há números em jogo, deixa de contar a teoria das probabilidades e passa a valer a probabilidade de uma teoria. Era como as borlas que conseguia no bar à saída do ministério: o barman era dado à cabalística e, sabendo que o estatístico profissional lidava com números, pedia conselhos sobre os números em que devia apostar. O estatístico profissional tinha consciência de fazer o papel do burlão, mas uma mentira piedosa é um mal menor em comparação com a verdade que faz condoer as suas vítimas. Assim como assim, as apostas do barmansó consumiam uma pequena parte do seu pecúlio. A tudo isto se juntava a consciência da falta de consciência do estatístico profissional. As borlas eram tão importantes como o são para a gente da moda que se faz passar por “influencer”. À medida que as borlas eram embolsadas, maior era o pecúlio contabilizado na sua conta bancária. Os números são ardilosos quando a consciência se dissolve perante a sedução da ambição sem medida. É uma aritmética cega, não sujeita ao formalismo matemático em que se adestrou o estatístico profissional.
26.8.22
Aritmética cega (short stories #407)
Yeah Yeah Yeahs, “Zero”, in https://www.youtube.com/watch?v=pmGNo8RL5kM
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