12.8.22

Não me peças gramática (short stories #398)

Nils Frahm, “Re”, in https://www.youtube.com/watch?v=ScUP6MKmXpg

          A linhagem dos honrados ensina as boas lições. Aparentemente, devíamos ser todos bons alunos. Sabemos não ser o caso. Sabemos, por experiência própria, não ser o caso. Deixamos que o idioma do hedonismo seja língua-franca. Prescindimos de convenções. Desagradamos aos cultores dos costumes (e nem se fala dos bons costumes, apenas de costumes). E, todavia, sabemos o que significa consuetudinário. Se estradas houver que fujam às paisagens lineares, essas são as que trazemos para o mapa. O enredo não se compõe de palavras insalubres. Não arremata os laivos de esperança que adejam nas bandeiras maioritárias, aqueles que enfeitam elocuções ostentosas e gongóricas. Preferimos a lonjura, o propositado critério que se evade das águas aplacadas. Se nos dizem que há regras por cumprir, perguntamos por peças de teatro, por paisagens escondidas, pelos ultrajes que estão à espera de ser esconjurados, sem propósito nenhum. Nadamos até ao vértice do tempo e agarramos as nuvens que se insinuam entre os dedos. Aprendemos com a matéria-prima de que somos escultores. Os gatos sabem do que falamos. Seus são os olhos ávidos que folheiam as páginas da candura. Nosso, o eflúvio que se eleva na formatura das palavras, nos olhares descomprometidos que podiam aspirar a compêndios, se esse fosse o caso. Pegamos nos estilhaços da memória e congeminamos a fuga. Para dentro de um labirinto onde juntámos, à força das palavras cúmplices, a argamassa que inventariou as demais paredes. Hoje, somos uma cidade inteira. Cuidamos do levantamento topográfico dos nossos corpos que se juntam no ocaso que é sempre uma jura. Tomamos o desfiladeiro que vem depois entre mãos, tão confiantes que dispensamos o arnês. Prosseguimos, sem sabermos da finitude do tempo. A estalagem que nos espera é o vazio, esse pedaço de geografia que podia ser crismado com os nossos nomes – se esse fosse o caso. 

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