11.8.22

Os relógios desacertados (short stories #397)

The Limiñanas, “Art Rock” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=GyoNufvLLf8

          Esta é a corveia dos apressados: o maneirismo constante do olhar que consulta o relógio. É preciso saber se estamos atrasados. Porque não podemos estar atrasados. Esta tirania emudece a qualidade de vida. Como se diz no adágio, andamos a toque de caixa – só que a caixa é um eufemismo dos relógios, por sua vez os testes-de-ferro do tempo que nos silencia a vontade. Houve em tempos um sonho: os relógios perdiam o equilíbrio e deixavam de ser bússolas fidedignas do tempo. Se fossem consultados cinquenta consecutivos relógios, veríamos cinquenta diferentes medidas do tempo. Ninguém saberia da hora rigorosa. Como se de um fuso horário difuso se tratasse, com a diferença de a diferença não se aferir apenas pelo ponteiro das horas, que a divergência se pautava sobretudo pelo ponteiro dos minutos. O sonho prosseguia os seus termos: podia ser que este fosse o pretexto para nos emanciparmos da tirania do tempo. Para não haver horas marcadas e para deixar de existir a mal-afortunada pontualidade britânica. (Ficava por saber se esta alteração dos termos contratuais seria um punhal engastado, e bem fundo, na carne da idiossincrasia britânica.) De acordo com o sonho, deixaríamos de ter a caução do tempo como mandante da vontade. Ninguém estaria atrasado. Ninguém estaria a tempo. O tempo deixaria de ser uma convenção. E fruíamos todos de uma liberdade prestigiada pela curadoria da vontade. O sonho iludia os custos que a desautorização do tempo podia ter para a organização social. De acordo com o sonho, não importava. Os benefícios superavam as contrariedades. Talvez fosse tempo de eliminar o tempo enquanto constrangimento. Passaria a ser uma mera medida indicativa, sem capacidade para embaraçar ninguém. Podia ser que todos os relógios perdessem serventia. E os que teimassem, podiam ser que perdessem validade. Por manifesta irrelevância. Seria mau para os colecionadores de relógios. E para os amantes do tempo.


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