19.8.22

O pedal do meio (Niagara falls) (short stories #402)

Turnstile, “Blackout”, in https://www.youtube.com/watch?v=YtGRLKVzzdg

          Esse era o cisma: as águas torrenciais que se despenham no desfiladeiro – aquilo que a geologia denomina “quedas”, ou “cascatas” (se precisarmos da ajuda da poesia). Sobranceiro à queda de água, o cisma: e se o pedal do meio não funcionar? Era preciso dar um passo atrás na cronologia e perguntar que encorajamento haveria para meter a primeira velocidade e mentalmente ordenar o corpo a despenhar-se no desfiladeiro onde o som tonitruante da água em queda livre era o idioma? Queda livre: que bela metáfora e, todavia, tão descabida. A água despenha-se, livra-se da força de arrasto que a prende ao caudal e desafia a força da gravidade, livre então. Pinta um quadro terrivelmente belo. Belo e mortífero. Como não fez o trabalho de casa, não perquirindo em antecipação sobre a cascata, não sabia dizer se o desfiladeiro foi apeadeiro terminal para vidas que, a bem ou a mal, por ato suicidário ou como resultado de uma imprevidência, ali foram cessadas. Aí estava, a centímetros escassos do precipício, o vento misturado com as gotículas que vinham à superfície por entre o turbilhão assassino que mergulhava no abismo, de olhos, contudo, fechados, imerso no lugar inexplicavelmente sortílego. Era como se estivesse vestido da sua nudez e o pensamento caiado pela brancura que lhe devolveu uma virginal originalidade. A vida ganhara um sentido como nunca fora dado a entender. Os pés podiam vincar-se na firmeza possível, como se fossem o pedal do meio a acionar um travão. Não era o caso. Sentia que levitava, estrangulando o medo que, noutros preparos, o teria impedido de se situar no limiar do precipício. Saiu da queda de água a saber que os travões mentais precisam de ser desafiados. Esse é o equinócio necessário de que rumoreja a avidez da mudança. 

Sem comentários: