“Há palavras que merecem ser imorredoiras. Essas, têm de ser escritas a tinta permanente”. Eu discordava. Não é a tinta permanente que sela as palavras intemporais. Se as páginas forem rasgadas, ou perdidas nos destroços do futuro, não é a tinta permanente que salva as palavras. Ou se, depois de extinto um fogo, o espólio da tinta permanente foi consumido pelas chamas intransigentes, o que sobra das palavras? Disse: “não é a tinta permanente que serve de caução. É a sua genealogia, o ficarem embebidas na carne de quem as escreveu e de quem as leu. A tinta permanente é um ornamento. Não é uma garantia.” Exibiu um esgar de desconfiança, muito provavelmente ia discordar: “nem que esteja a falar com a intermediação de uma metáfora?”, disparou, sem demora. Os ruídos ficam por conta do papel onde as palavras foram arrematadas. Se as páginas forem amarrotadas, o estrépito descompõe as palavras. É indiferente terem sido debruadas a tinta permanente. Insistiu: “e a elegância do texto, não conta? As palavras assim escritas sobem de tom pela caligrafia cuidada. A forma empresta-lhes algum conteúdo.” Não estava convencido. A tinta permanente só é de nome. Se as palavras vertidas através dela ficarem expostas à luz diurna, a tinta depressa se contraria na sua linhagem. Desmaiada a tinta permanente, esmaecem as palavras que são apenas uma silhueta, um esboço ininteligível do texto original. Desviei a conversa: “importa tanto saber que há palavras que têm a tinta permanente como moldura? Interessa tanto saber que há palavras imorredoiras?” O silêncio apoderou-se do palco. Demorou-se. Talvez o silêncio fosse orquestrado a tinta permanente. O silêncio não se escreve nem se apaga, mesmo que palavras imarcescíveis sejam contadas na obliteração do silêncio. O silêncio, até quando é atropelado, conserva o seu lugar cimeiro. Ele é o depósito da tinta permanente.
16.8.22
Tinta permanente (short stories #400)
The Blaze, “Territory”, in https://www.youtube.com/watch?v=54fea7wuV6s
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