15.8.22

Monólogo (short stories #399)

Moderat, “Les Grandes Marches” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=0E-HnBUGWEw

          Procuro um lugar para o empréstimo de identidade. Não é ensimesmar; cuido apenas do elevado estatuto da exigência, que começa por dentro de mim. Colho almadamente as sementes que se avivam no fiorde onde o sol se renova. Embebo as palavras no avulso dos poemas que se ungem na memória. Se não recuso os dias fortuitos, por que hei de protestar as constelações de onde procede a luz proverbial? Serão os jardins, os rios que esculpem o caudal entre as rochas obstinadas, as pessoas militantemente anónimas que superam qualquer notável sem se ficar a saber, as pontes que são o estuque dos diferentes lugares, os rostos avinagrados pelas rugas, a idade sem bilhete de identidade, os lugares desconhecidos que perdem essa linhagem, as diferentes camas de hotel que já foram hospedaria de sabe-se lá que gente – tudo amontoado num arquivo de memórias do futuro, como se na exiguidade da tela fosse possível desenhar a inteireza da constelação dos sentidos que desfilam na passadeira do tempo. E penso: todos aqueles fragmentos, e muitos outros que seriam inventariados por outras pessoas, são a cidade em que medra tanta a gente que a habita. Não há originalidade no esboço. Não há, porventura, originalidade na idiossincrasia que me desidentifica com as possíveis pertenças. Os efeitos banais dos dias sucessivos acumulam-se na pele que é atravessada pela dissipação em forma de rugas. O pressentimento da decadência é um vulto que esbraceja, como bandeira bandida que não cessa de transgredir o olhar forçado a deixar de ser servilmente inquisitório. A transfiguração é o modo de fazer acontecer vida. Desestimá-lo é uma ilusão que se consome no dorso do fingimento. Envelhecer não é um custo; é o preço de sabermos que fomos admitidos a esse cais. Ao menos, a música resiste ao insidioso apelo da decadência.

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