30.8.22

Vantagem para o rapaz com calções vermelhos (short stories #409)

Pop Dell’ Arte, “Poppa Mundi”, in https://www.youtube.com/watch?v=gvDN2wBLCTg

          Que água é esta que vem à borda da boémia? Endereçou-se a pergunta ao árbitro (há sempre um árbitro algures, quase nunca imparcial). E o árbitro coçou o queixo enquanto pensava no assunto – era pior se assentasse o punho sob o queixo, naquela pose reflexiva e pesporrente que os candidatos a eruditos põem quando são convidados a aspirar a eruditos. O árbitro murmurou: “quem dá mais, neste leilão de vaidades?” Só os mais atentos conseguiram ouvir o murmúrio. A concorrência não estava garantida – e o árbitro sabia-o. Um observador exterior (talvez o narrador), sem nenhum interesse na causa a não ser a delimitação do conceito (como se estivesse a soldo de um dicionário), perguntou ao árbitro por que não arbitrava com lisura. O árbitro desconversou, enquanto fingia atender o telemóvel (moda em voga para quem não quer ser importunado num corredor ou num lanço de escadas). O eventual narrador desistiu. Por estas alturas, o sociólogo que habita em cada alma começaria a perorar sobre a natureza humana e a propensão para a má linhagem da espécie, mas uma imensa venda imaginária silenciou a análise amadora. A audiência aguardava a palavra resolutiva do árbitro. Numa jogada desconcertante – pois ao árbitro não é dado participar no jogo encenando lances –, proclamou sentença pouco convincente (atendendo às suas palavras trémulas): “vantagem para o rapaz de calções vermelhos”. Todos dirigiram o olhar em redor, para situarem o rapaz de calções vermelhos. Não correspondia ao código de vestuário dos presentes. O silêncio foi usado como gramática da perplexidade: como pôde o árbitro responder com esta não-resposta? Estaria sob influência de substâncias ilícitas? Horas depois, antes de se emprestarem à anestesia do sono, alguns entenderam a resposta do árbitro. As águas da boémia teriam delimitação em memória futura. Quando houvesse um rapaz de calções vermelhos a participar a boémia. 

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