Sorry, “Screaming in the Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=3jFxIJDnhX0
Como se pode ensinar geografia aos petizes se são os graúdos que mais entorses cometem? Chame-se Volta à França se a Volta à França decorrer na França. Chame-se Paris-Dakar se os concorrentes fizerem a ligação entre Paris e Dakar. Da mesma forma que os campeonatos das modalidades várias que são partilhados entre um ou mais países levam com a designação dos países organizadores. Ou como o Rock in Rio se chama Rock in Rio em Lisboa quando os concertos acontecem em Lisboa. Para densar o mistério: Wimbledon, Le Mans e a regata Sydney-Hobart nunca saíram de Wimbledon, de Le Mans e dos mares entre Sydney e Hobart.
Ou então, se a Volta à França começa na Holanda e faz uma incursão num pedaço de Itália, chame-se-lhe Volta à França e a mais alguma coisa. E se o Paris-Dakar não começar em Paris nem terminar em Dakar, dele se diga que é o Paris-Dakar na Arábia Saudita, como dantes se diria ser o Paris-Dakar na Argentina e no Chile. Para não se ofender a geografia e não confundir os dela menos conhecedores, que poderão ficar desorientados ao saberem que a Volta à França andou por estradas italianas e que o Paris-Dakar começou em Mendoza, Argentina, e terminou em Santiago do Chile, sem que algum destes lugares seja na Europa ou em África.
Não é por ser cosmopolita que estes acontecimentos que têm um bússola geográfica registada mas metem a colherada noutras latitudes e longitudes são menos excêntricos. A adulteração geográfica abraça-se à modernidade que esbate fronteiras e funde territórios, saltando as inconvenientes fronteiras. É de louvar que este exercício de cosmopolitismo convença os cidadãos futuros que foi a defesa intransigente das pátrias que levou muitos antecessores seus para o túmulo. Fronteiras desfeitas e territórios fundidos são a exaltação de uma paz quase sempre depreciada lá atrás – e hoje também.
Que sejam dados novos nomes aos eventos que sempre foram conhecidos por terem uma determinada filiação territorial. Para que a geografia não seja enganada e, com este logro, uma numerosa fação se convença de erradas convenções geográficas. Para os desconhecedores, nem Paris nem Dakar estão na Arábia Saudita. E o pedaço de terra italiana que é percorrida pelos ciclistas da Volta à França não decidiu pela secessão, juntando-se à França. Mal por mal, quando vem a Lisboa, o Rock in Rio inclui a menção do franchising geográfico. É como se fosse uma extensão do produto. Sem ofender a geografia e enganar os descuidados com a geografia.
Expresso Transatlântico, “Quando Neptuno Deu à Costa”, in https://www.youtube.com/watch?v=OWHkHZBERxk
Que lua franca é esta que habita no sangue exilado? Que mudo rosto se entretece no negro dos xailes que cantam o fado ausente? Que fugitivos procuram searas sem fim como pedestal para uma epifania?
Os povoados pareciam aquelas modas circenses que nos encavalitam num humor trivial. Agora, as pessoas não tinham medo de sair à rua; outro fora o tempo de exílios forçados, a reclusão entendida como vacina fundamental para não ser outra vítima de uma peste inominável. Parecia que um mau olhar adejava sobre os mortais, soprando ao ouvido fantasmas de morte, esqueléticos e, todavia, sagazes na sua empreitada. A diligência derrotou a peste que parecia talhada para derrotar a espécie. Conseguiu-o, temporariamente, com o medo acasalado com o refúgio interior e a concessão, ainda não se sabe se especulativamente imperativa, às estremas excecionais ditadas pelos poderes.
Agora, vencido o fantasma maior que se apoderou de todas as letras maiúsculas enquanto não teve antídoto, é a nossa vez. A vez de mandarmos mau olhado a esse mau olhado. É a nossa vez de convocarmos os luares radiosos, de desengaçarmos os imeritórios espelhos que embaciaram as nossas silhuetas. Vamos a esses luares inventados no futuro e resgatamos o simples ser, essa desconsciência que parecia ter inaugurado a banalidade – o vazio irrefreável de nós.
Dos negrumes que desenfeitaram as vidas, já só sobra uma memória. Uma distante memória que não se alija do medo averbado, no adiamento das vidas, do penhor contínuo de que fomos involuntários procuradores. Desses negrumes sobram os xailes que compõem os ombros de uns nostálgicos que foram devolvidos à angústia do anonimato. A sua mudez confirma a nossa voz.
Voltámos às rédeas de nós. Não somos casas assombradas que se despem de paredes. Não somos vozes mudas que se mudam de um vocabulário para uma geografia sem idade. Não somos um sangue letargo à espera de aceitação. Não somos as temíveis entidades que se esgotam num ensimesmar enquanto nos expropriaram os passaportes. Somos as poderosas encenações que somos, encenações que não nos distinguem de atores que sobem aos palcos, pois nosso é o palco de todos os dias, de fingimento em fingimento, tornando mentiras numa metáfora, mudando as consoantes por vogais e deixando que o chão se tome como teto, até ao pensamento ficar do avesso e nós, enfim, habituados. Somos toda essa fragilidade e rimo-nos por tão grande fragilidade ter derrotado os vultos que nos cercaram de caos e distopia.
Pois soubemos do nosso mau olhado fazê-lo mais forte do que o mau olhado que sobre nós adejava.
Beck, “Lonesome Tears”, in https://www.youtube.com/watch?v=zWe6bMVvTzk
Chovia pelas ruas ermas que não vinham ao caso. O chão alagado era a sementeira das lágrimas avivadas nos cristais que transluziam entre o negro das pedras. Se houvesse uma ata para registar os prantos, as tempestades teriam nomes – e não seriam nomes discricionários, como os que os peritos atribuem aos furacões.
Um vulto errava pelas ruas desertas. Não tinha medo da tempestade. Talvez estivesse molhado até aos ossos, não se conseguia perceber se a roupa era impermeável. Ele era impermeável, a julgar para errância metódica e por não capitular mesmo sentindo a fúria da chuva bolçada por deuses iracundos, ou talvez fosse apenas por desdeuses. Não estaria para metafísicas, nem parecia que fosse tropeçar numa epifania antes que um contratempo expulsasse a noite do seu domínio. Antes prosseguisse a demanda, que as horas não assobiavam para o lado.
Cruzou-se com um mendigo (ou seria um estroina, a eviscerar as consequências lancinantes da boémia). O homem cambaleava, meio derruído, enquanto os versos noturnos esvoaçavam nas entrelinhas do tempo e o vulto pairava, como se fosse o mecenas da desordem. Ao começo, o vulto não notou o outro homem. Quando mandou o olhar recuar, não percebeu se era um mendigo trespassado pela invernia ou se se tratava de um boémio que fizera uma escala técnica no eivo do seu interior desassossego. O vulto pensou: “eu já fui como aquele boémio”, dando por garantido não se tratar de um mendigo. Ou então, deu um salto no tempo e atravessou-se no caminho do futuro, querendo obliterar um possível oráculo que pressentia o espectro do mendigo.
A manhã já não era um simples pesadelo às costas da noite. A breve neblina sucumbiu ao sol que depressa seria exigente. As pessoas começaram a sair de casa, lotando as ruas, os cafés, os jardins, os edifícios onde o trabalho se congemina; lotando o silêncio com as suas vozes espectralmente estridentes, corrompendo a noção de silêncio com o seu silêncio melancólico. O vulto adormeceu na penumbra que se abateu sobre a consciência. Já não era assaltado pelos pesadelos que sofria enquanto o sono era consumido por insónias. Revoltou-se contra a indulgência dos que sopesavam a maresia enquanto ditavam decretos de generosidade. “São uns pulhas”, ainda foi a tempo de vociferar, vagarosamente, enquanto o corpo se anestesiava no, enfim, sono. Sempre detestou a generosidade exibida pelos outros. Sempre detestou o fingimento.
Quanto ao boémio (ou seria um mendigo), não há sinal do seu paradeiro.
The Stranglers, “Golden Brown” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=-W4LvJ2tdvk
Não se insista nos mesmos hábitos que transformam o quotidiano numa rotina, nos mesmos preconceitos, nos mesmos adornos retóricos (transfigurados em lugares-comuns), nos mesmos pressentimentos que nunca se confirmam, nos mesmos lugares quando há tantos desconhecidos por demandar, nas mesmas pertenças, nos mesmos repositórios de costumes, nas mesmas teimas que não se cansam, nos mesmos vieses armadilhados em fortes teias, nos mesmos julgamentos autocontemplativos que depois se caldeiam com uma angústia inexplicável, nas mesmas superstições, nas mesmas imagens de deuses só por interior conforto, na mesma sofreguidão entre narcisismo e auto depreciação, nas mesmas geografias hiperbolizadas, nas mesmas cidades sem curadores, nas mesmas fortalezas tão frágeis, nas mesmas águas furtivas que não encontram um caudal a preceito, na mesma impaciência, nos mesmos medos não esconjurados, nos mesmos luares que se ateiam no sentimento baço, nas mesmas redes do passado que ultrapassam o futuro antes de o ser, nas mesmas atalaias que se estendem sobre os outros, nos mesmos espelhos que não perdem validade, nos mesmos prantos interiores que se reconciliam na solidão, na mesma impureza que atira meneios de indulgência como pretexto para exculpações, nas mesmas góticas palavras que se entretecem num gongórico falar (antes houvesse profundo silêncio), nos mesmos arsenais que só se armadilham contra incertos, nos mesmos povoados rurais que se enredam num xisto umbroso, nas mesmas rodas e nas mesmas estradas sem arrematar algum conhecimento de causa, nas mesmas metáforas exauridas, no mesmo cansaço que esgota a noção de cansaço, na mesma intolerância que desmente teóricos pronunciamentos, no mesmo policiar do totalitarismo dos outros sem reparar que se averba o seu privativo, não reconhecido, totalitarismo, no mesmo igualar dos dias pretéritos, deles fazendo uma câmara escura que se repete sem deixar que haja diferença entre os dias sucessivos, na mesma franquia devoluta, no mesmo despreparo contínuo. No mesmo mesmo, a meio do nada.
Collective Soul, “Shine”, in https://www.youtube.com/watch?v=_m0bI82Rz_k
O Estado de direito é pouco amigo da desobediência. Desobedecer rompe com o edifício normativo e semeia incerteza. O “cidadão médio” (essa abstração) detesta incertezas. E se a desobediência ultrapassar os muros da legalidade, a legalidade é amputada. Andaremos perto da anomia. Contudo, o Estado de direito não pode ser um vigilante cego das suas muralhas, insensível à paisagem política e aos seus efeitos adversos na comunidade.
Não é por acaso que o Estado de direito admite o estado de exceção nas condições muito exigentes em que as autoridades aprovam a suspensão, ou a limitação, de direitos e garantias sufragadas pelo Estado de direito. O exemplo dos direitos cívicos cerceados durante a pandemia é o mais recente. Do mesmo modo, o Estado de direito contempla a hipótese do direito à desobediência. É uma hipótese mais controversa, onde a subjetividade de avaliação dificulta a legitimidade da desobediência.
Quando as instituições entram em falência e não exercem as suas competências de forma competente, os danos vertem-se sobre todos. Mas nem todos, a começar pelos titulares das instituições, reconhecem a paralisação das instituições e, ato contínuo, a sua incapacidade para lidarem com os problemas da comunidade. Os interesses instalados, que preferem o estado das coisas como estão (malgré tout); os pequenos jogos que se jogam entre forças e atores políticos, em que o acessório (a conservação do, ou a ascensão ao, poder) é tomado como o principal; ou a miopia, com a armadura da teimosia, que trava a lucidez sobre o “desestado” das coisas tal como estão – todos estes fatores evisceram o direito à desobediência. Esses fatores estão prenhes de subjetividade, tanta quanta a dos que se propõem instalar a desobediência. São subjetivas por igual.
A subjetividade torna-se uma bomba relógio, liquidando a legitimidade do direito à desobediência. As aferições podem ser contaminadas pelo viés da análise. Os que preferem o status quo dirão que as anomalias são meros acidentes de percurso, não pondo em causa a normalidade da governação nem hipotecando o presente e o futuro da coletividade. Será sempre difícil, a quem gravita na órbita do poder, admitir que o poder caiu de podre. Enquanto existir, o poder nunca é podre (ainda que seja um podre). Os danos são matéria de contínua relativização e os seus efeitos medem-se por defeito crónico. Do outro lado situam-se os insatisfeitos com o “desestado” em que as coisas estão. Poderão não saber sucumbir à tentação da limpeza geral que o desgoverno exige. Poderão exagerar no diagnóstico. Exagerando no diagnóstico, exorbitam na prescrição. Não terão lucidez para medir os efeitos instalados após o caos para resolver o que têm como caos. Não antecipam remédio se as instituições continuarem disfuncionais. Os primeiros exaltam um deserto destrutivo se os titulares das instituições forem apeados. Os segundos tentarão demonstrar que, pese embora a incerteza como legado perene, nada pior haverá do que o poder conservado pelos seus atuais titulares. Mesmo que não consigam atestar o que se segue.
Parta-se de uma hipótese: se eu ajuizar o estado irremediável das instituições por inépcia dos seus titulares, ponho em causa as instituições ou mobilizo-me para afastar os titulares? Posso estar dominado por um absoluto estado de descrença nas instituições, permeável como sou à mediocridade dos atores políticos inscritos nas listas de habilitação para a função (ou até dos promitentes, em sabática, à espera de uma oportunidade para ressurgirem). Posso antecipar que a substituição de uns por outros, na simples lógica da alternância, não mudará a natureza das instituições nem será remédio para os problemas que continuam a atrasar a comunidade. Devo ativar o direito de desobediência, tornando-o um dever? Como manifesto esse dever?
A espessura da distância entre os pronunciamentos teóricos e a prática possível fragiliza a teoria. Se considerar que devo ativar o dever à desobediência, como procedo? Deixo de pagar impostos? (Uma impossibilidade quase total: o mecanismo de cobrança de impostos afasta a possibilidade de rebeldia fiscal.) Deixo de responder aos comandos normativos, caindo em repetidas ilegalidades? Sujeitar-me-ei a uma espiral de multas e condenações? Ver-me-ei privado de liberdade por uma temporada na prisão? Estarei disposto a ser fugitivo das leis, vivendo em sobressalto, num nomadismo voluntário? Não aceitarei a legitimidade dos tribunais? Tornar-me-ei pária?
Ou então, os moderados, situados algures entre os dois lados da barricada, serão mediadores. Artífices da moderação como critério de aproximação. Tentando provar que o íngreme desfiladeiro da desobediência pode resolver um problema sem resolver os problemas. Convocando um levantamento pacífico, convidando os insatisfeitos a mapearem o profundo descontentamento em públicas manifestações, públicos pronunciamentos, sem se tornarem párias. Até que, sob ameaça da desobediência, em sucessivos protestos que denunciam o “desestado” das coisas, medre uma solução – uma solução qualquer, em que os titulares do poder e os que participam na normalidade se sintam acossados.
Os moderados assim perfilados distinguir-se-ão pelo otimismo. Esse otimismo é a diferença entre a renúncia ao caos normalizado, arbitrada pela desobediência, e a manutenção de um coma, com prescrição generalizada de anestésicos. Conserve-se o direito à desobediência como uma importante arma no arsenal da cidadania. Para que os regentes, convertidos em problema sem remédio, e os com eles complacentes, se amedrontem com a possibilidade de desobediência. Para que, enfim, capitulem, cônscios que o direito de desobediência se pode transfigurar num (para eles) pesadelo: o dever de recorrer à desobediência quando o “desestado” de tudo isto é irreparável se os titulares das instituições continuarem a malbaratar o poder.
O direito à desobediência é ativado para prevenir o amanhã sem moeda própria. Protestar contra o “desestado” das coisas já é uma manifestação de desobediência, bolçada, e com provocação, sobre os que fingem que estamos em velocidade de cruzeiro para a nobilíssima fruição de um estado excecional.
Black Country, New Road, “Good Will Hunting” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=GcbrtaEhJzk
Como somos useiros e vezeiros no mau conhecimento da geografia das vírgulas, tantas vezes as deitamos fora do lugar, era importante uma reciclagem (para os vezeiros) ou a oferta de um curso inteiro (para os useiros). Uma vírgula fora do sítio adultera o sentido da oração. Com a oração adulterada, o destinatário lê um sentido diferente do pretendido pelo emissor. E assim nascem mal-entendidos, que por vezes são entendidos como a ignição para graves crises interpessoais, atritos diplomáticos ou até, em situações extremas, guerras.
Consentir que uma pergunta não participa no programa da ofensa é um lugar-comum – constitui, até, um adágio popular; a um nível mais erudito, é todo um programa da linhagem indagativa da filosofia. Perguntar não ofende. Se for enxertada uma vírgula, a frase fica refém da sua contrafação. Se a vírgula encontrar morada a seguir à primeira palavra, a frase fica redesenhada: “perguntar não, ofende”. É a negação do postulado do adágio, a demissão do método filosófico, “só porque” uns quantos não toleram interrogações que podem albergar um incómodo. Ou então, tudo não passa de um mal-entendido e o fautor da frase não sabe colocar vírgulas no lugar. Escreveu o contrário do que pretendia afirmar. A culpa é da vírgula, dirá. A culpa é dele, que não sabe o paradeiro da vírgula.
Quem fique ofendido com a ofensa dos que assim tomam as perguntas que recebem na volta do correio podem cair na tentação de mudar o lugar da vírgula, avançando-a uma palavra. A frase remexida é “perguntar, não ofende”. Destronam o lugar da vírgula e cobrem-se de razão substancial: quem, no seu juízo, se ofende como uma pergunta que lhe seja dirigida, por mais que a pergunta confronte o perguntado com a halterofilia de uns quantos sobressaltos levantados? A confirmação da ofensa da interrogação teria um valor proibitivo: a censura do interpelante, impedido de formular a pergunta “só porque” o destinatário pode ficar incomodado. As perguntas são um mapa de contratempos. É da sua natureza. Não deixam de ser bem-vindas, sobretudo para quem tem o desassombro de as formular.
Quem arrastou a vírgula uma palavra para a frente tornou-se partidário de uma inutilidade. A frase não precisa de vírgulas, está de saúde intacta se as vírgulas estiverem ausentes. Ao menos, esta colocação indevida da vírgula não adultera o sentido da alocução; infringe uma regra gramatical.
Tal como a partida falsa não é uma falsa partida, será essa a razão para alguns literatos evitarem vírgulas, ao saberem de outros, putativos eruditos, que tropeçam nas vírgulas como se uma castanha quente explodisse na boca? Perguntar não ofende.
Eels, “Novocaine for the Soul” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=LJbTO_RHD40
Multimilionários reunidos em Davos pedem que os governos aumentem os impostos que eles pagam. Contextualizam: em tempos tão difíceis, os governos devem ativar a redistribuição ao máximo. Um comentador glosa as capas dos jornais num programa de televisão. Detém-se na notícia que vem de Davos. Começa a especular. Os multimilionários estão empenhados numa campanha que é, ao mesmo tempo, de relações públicas pessoais e de salvação do capitalismo.
O comentador faz um favor à audiência e expande o raciocínio. Os multimilionários estão ao corrente dos tempos de chumbo por que todos estão a passar, agora que o espantalho da inflação foi ressuscitado e deixou de ser (pelo menos para os que têm memória de muito curta duração) uma curiosidade arqueológica. Os pobres são as principais vítimas de uma inflação destas. Ato contínuo, os multimilionários ensaiaram em estratégia de sobrevivência, sua e do capitalismo de que são principais intérpretes. Para conter o potencial de sublevação de turbas a definhar no pedestal da inflação, os muito ricos querem salvar o rosto antes de ele ser condenado pelos efeitos imprevisíveis de uma revolta alimentada por uma inflação febril. A estratégia consiste em abrir o flanco a impostos mais elevados, para que a redistribuição possa ter alimento musculado. Querem pagar mais impostos para travar uma revolução de que seriam vítimas. O aumento dos tributos é um expediente para salvar o capitalismo da sublevação dos povos.
O comentador começa a puxar lustro ao pessoal oráculo. Nada disto é genuíno. Os multimilionários só se importam com a sua abastança. Ensina a História (e, possivelmente, Marx), os muito ricos nunca tiveram sensibilidade social, nunca foram generosos com os pobres e sempre quiseram manter estatuto e privilégios, oprimindo os outros sempre que foi preciso. De acordo com o comentador, a isto chama-se “neoliberalismo”, ou capitalismo de casino.
O comentador é o testa-de-ferro de uma plêiade de intelectuais especialistas em passarem para a teoria o que corresponde aos seus íntimos desejos. À falta de provas que corroborem o argumentado, sentam-se em cima da elevada craveira intelectual e dão a paternidade a uma epistemologia do “é-assim-porque-eu-acabei-de-o-estabelecer”. Utilizam uma grelha de leitura, que se apoia nas ideias em que se inspiram, para adivinhar comportamentos. Como do passado não há provas da sensibilidade social dos muito ricos nem apetência para a redistribuição através dos impostos dos mais ricos a favor de subsídios para os mais pobres, extrai-se uma certidão do passado para selar a ata do presente e do futuro. Os multimilionários estão-nos a tentar vender um logro. Sem que o comentador mostre provas do ardil que motiva os multimilionários, cuidando de generalizações que são a parte fraca quando medidas como critério, rematando com o logro de que somos vítimas se acreditarmos que aos muito ricos, de repente, apetece-lhes pagar impostos mais elevados.
Os pergaminhos dos capitalistas de casino não abonam a seu favor (tirando uns casos – dirão os mais exigentes, escassos – de mecenas). Não é dado a saber ao comentador e a outros que tais, tão excitados com a denúncia dos capitalistas aldrabões, que extrair do passado comportamentos padrão que serão o selo inevitável do futuro, sobretudo quando as circunstâncias se alteraram tanto, não passa de especulação.
Uma especulação não é uma teoria, nem muito menos uma ideia.
Trent Reznor & Atticus Ross, “(You Made It Feel Like) Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=lCv0To6Jo6o
O navio partiu com as luzes apagadas. Queria sair como um fantasma. Não queria que sentissem a sua falta. Não era por vergonha. As despedidas – sabe-se lá – podem ser um adeus que não se repete. As almas arrefecem os arrependimentos quando não tentam alcançar Everestes impossíveis. Para uns, as despedidas eram evitáveis. Para outros, podiam ser a última vez; eram irrecusáveis.
A galope dos provérbios, a cançoneta incansável que se toma por sabedoria popular, os marinheiros assobiam mansamente. É a sua prece. Os assobios servem para esconjurar tempestades que queiram ser companhia futura do navio. Os marinheiros preferem águas calmas. A ida a terra, com todo o seu corrupio, fica por conta do desassossego. Da sua participação no capital universal do desassossego. Que ninguém se convença que o hedonismo não traz um caderno de encargos.
À noite, já só com a companhia do mar escuro, um marinheiro recebeu a visita de uma sereia. Só os marinheiros conseguirão explicar, se lhes perguntarem, por que os seus sonhos têm sereias assíduas. Safaram-se dessa empreitada: ninguém se lembrou de perguntar e assim se preveniu uma pergunta embaraçosa que ficaria deserta de resposta.
Outro marinheiro, colonizado pela insónia, viajava pelas constelações enquanto partilhava a solidão com o convés. Talvez estivessem a meio de todos os mares, equidistantes entre os lugares com terra mais próxima. Daquele sítio, tanto dava recuar ao cais de origem como avançar para o destino. O navio parecia parado. Ou era o marinheiro que estava cansado de ser marinheiro. O mar, especialmente pela noite, é a tradução da solidão. Para ele não era novidade. Antes de ser marinheiro já sabia o que era a solidão.
Podia ser que o amanhecer mudasse o rosto do dia. Até o rosto do mar. Podia ser que um bando de sereias cortejasse o navio e, com os seus braços tentaculares, trouxesse o navio para a reclusão interior. Seria preparado um festim. As sereias, disfarçadas de fadas do lar, ora de ninfas, ofereciam um manjar à tripulação. Os marinheiros, anestesiados com o encantamento, aprendiam depressa a tratar a soberba por tu. Submersos pela ilusão, sitiados pela promessa de prazeres, tomaram os seus cadeirões como se fossem suseranos de todos os mares. A música, hipnótica, era o palco onde se esgrimiam danças insinuantes. Os marinheiros souberam que as sereias não têm escamas.
Os seus braços inertes antecediam os corpos corrompidos pela boémia. Não se ouvia o murmurar constante das máquinas que faziam o navio avançar. Estava tudo escuro. Já era dia, mas uma escuridão insólita aproveitou-se da distração dos marinheiros e falou pelo tempo fora. Os marinheiros não conseguiam falar. Não importava. Tudo o que queriam dizer pertencia às memórias que não transgridem as fronteiras de cada um. O dia que tratasse das demais diligências.
Underworld, “Low Burn” (live on KCWR), in https://www.youtube.com/watch?v=hNOQTt7AULw
Era grande a algazarra. Um vendaval sem memória varreu o lugar durante dois minutos. Ficaram os estilhaços das vidraças do imponente arranha-céus onde só havia escritórios de empresas de alta finança e de outras que se autointitulam unicórnios. Os nómadas digitais eram abundantes e conviviam com os pós-yuppies que já não são frenéticos como os seus antecessores. O prédio, a joia da coroa da cidade que subira de estatuto a pulso, ficou nu assim que as vidraças foram despenteadas pelo vento desassisado. Quem quisesse, podia espiolhar as entranhas dos escritórios. Quem quisesse, podia apanhar muita papelada bolçada desde as entranhas do arranha-céus. Deixara de haver segredos dos negócios. Diriam os homens de negócios, logo seguidos pelo coro de ingénuos nómadas digitais, que se fora a alma do negócio.
Cá fora, juntou-se a turba que fervilhava de desejo para atestar a linhagem do cataclismo. “Ninguém se magoou”, dizia um homem, repetidamente, enquanto um fio de sangue escorria da fronte pelo rosto abaixo e ele rodopiava de um lado para o outro. As pessoas só queriam saber que não houve baixas humanas. Os danos limitaram-se ao arranha-céus. “Do mal o menos”, balbuciou um interessado no rescaldo da intempérie. Ninguém notou que o homem que dizia que ninguém se ferira estava ferido. As pessoas arrastavam o olhar pelos despojos que foram expelidos pelo edifício, mal este se encontrou desarmado de janelas.
No meio de tanta confusão, o único ferido deixou de comparecer ao inventário da desgraça. Ninguém deu pela sua falta. Parecia que as pessoas estavam inquietas com os danos no arranha-céus. Alguém apimentou as reações instintivas, deitando combustível na fogueira: “a cidade não será a mesma enquanto as vidraças do arranha-céus não forem devolvidas ao seu lugar.”
Uma mulher andrajosa vagueava, o rosto apontado ao chão. Mal-encarada, dela não se ouviu uma palavra, não se viu um esgar sequer, por minimalista que fosse. À lapela, a velha misturava uma reprodução do rosto de Napoleão com os andrajos de quem não tinha céu para se esconder da noite intempestiva. Depois murmurou algo ininteligível, enquanto o cenho se fechava, como se estivesse a saldar contas com o mundo que está de mal com ela (manifestamente). Ergueu o punho, como se fosse um comício do partido comunista, e entoou um pregão repetitivo: “Napoleão, Napoleão, Napoleão, Napoleão.” Ninguém deu atenção à velha. Como não participaram da ferida do único ferido depois de estimados os despreparos do ciclone.
Não se sabia se havia remotos laços familiares entre a mulher e Napoleão. Ninguém lhe deu atenção. Se fosse o caso, os olhos da turba voltar-se-iam para o homem (o porteiro do prédio atingido) que estava nas vésperas de uma cicatriz logo abaixo do couro cabeludo. Quando menos se conta, os figurões são um zero à esquerda quando se comparam com o mais anónimo entre os anónimos. Só que ninguém sabia do paradeiro do porteiro.
LCD Soundsystem, “New Body Rhumba” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vdds98RiUm8
Podemos ser turistas sem contar. Sem sair do lugar onde vivemos. Só se exige a rutura com preconceitos e reservas mentais e ideias feitas. Só se exige que o olhar não esteja ensimesmado, apontando para o chão, como se no chão encontrássemos as respostas para as angústias que povoam a existência na cidade. Devemos ser turistas. Independentemente do lugar em que nos encontrarmos.
Devemos elevar o olhar a fingir que não somos nativos na cidade em que vivemos. Fingiremos que somos forasteiros, apesar de sabermos que não somos. É indesculpável que um forasteiro tenha ido a lugares que o nativo só conhece de nome (ou nem isso). Parece que existe uma desobrigação de sermos forasteiros na cidade em que vivemos; parece que não temos a obrigação de conhecermos a cidade como se das nossas mãos se tratasse. Fingimos que a conhecemos e nem nos conhecemos a nós mesmos.
Não fosse pela metáfora, perguntar-se-ia: e quem conhece de cor as palmas das suas mãos? Do mesmo modo que não seríamos capazes de desenhar, de olhos fechados, o mapa que as palmas das mãos contêm, sem sabermos já somos forasteiros na cidade em que moramos. E não damos um passo para alterar o estatuto. Agarrados ao preconceito do sedentarismo intelectual, convencidos que somos tutores da cidade em que vivemos, desobrigamo-nos do seu conhecimento. Não fomos a monumentos que constam do roteiro que os turistas obedecem. Não sabemos o nome de certas ruas. Não temos ideia da onomástica das ruas da cidade. Não sabemos os nomes que habitam a estatutária que ocupa lugar centrípeto em praças e avenidas. Confirmando-se o nosso estatuto de forasteiros do lugar em que julgamos ser impensável sermos forasteiros.
Ser forasteiro na sua cidade exige um passo prévio: a emancipação das amarras mentais que impedem conhecer um estatuto de outro modo considerado ilegítimo, impossível. Não está em causa reconhecer o estatuto de forasteiro; apenas conhecê-lo, saber da sua existência, mesmo contra os oráculos à prova de dúvida. A partir daí, estamos em igualdade de condições com os turistas que pisam o chão da cidade pela primeira vez.
Não é vergonha ser forasteiro na sua cidade. Quem diria que podemos aprender com os turistas que acabam por ser menos forasteiros do que nós?
Underworld & Iggy Pop, “Bells & Circles”, in https://www.youtube.com/watch?v=KmJWD9jQvhc
Iggy Pop, nos seus setenta e cinco frenéticos e ainda excêntricos anos de vida, dá-se ao luxo de fazer confissões controversas e os dias continuam a correr sem sobressalto, para ele e para os outros, que baixam a guarda no seu papel (autoatribuído, contudo) de juízes da moral que os outros devem seguir.
Numa parceria com os Underworld, Iggy Pop participa o seu desgosto com a evolução das viagens aéreas, lamentando, com a nostalgia de um septuagenário que surpreendentemente veste a máscara conservadora, que hoje não se pode fumar dentro dos aviões. Iggy Pop arremete pelo politicamente incorreto. O tabaco está proscrito, apesar de não haver a coragem de o ilegalizar, talvez porque os Estados se abotoam com fartas receitas fiscais, enquanto fazem de conta que exercem um papel paternalista e procuram, com imagens terroristas pespegadas em maços de tabaco, dissuadir os tabagistas de se matarem lentamente. Tão proscrito está o tabaco que até há personagens de banda desenhada que eram inveterados fumadores e se submeteram a um momento estalinista de defenestração tabagista.
Iggy Pop confessa que tem saudades de fumar dentro de um avião, quando os viciados em nicotina se aglomeravam na parte de trás, junto às casas de banho. Também tem saudades de galantear hospedeiras, possivelmente incorrendo no crime se assédio, se aferido pelos cânones contemporâneos. A sorte de Iggy Pop é que, naquela altura, cortejar hospedeiras não dava direito a uma queixa por assédio. (Não me tresleiam: o movimento “#MeToo” faz todo o sentido.)
Na mesma canção (“Bells & Circles”), Iggy Pop conta, com detalhes deliciosos, como ficou embevecido com uma certa hospedeira. Querendo pedir o número de telefone da hospedeira, só encontrou uma maneira de desafiar a incorrigível timidez (e ficámos a saber que Iggy Pop era tímido): inalar um grama de cocaína que espalhou metodicamente na mesa diante do seu assento. (Mas arrependeu-se: ficou tão inebriado com o pó aspirado que perdeu o número de telefone da hospedeira – e arrependeu-se porque vaticinou que a hospedeira era melhor do que a cocaína...)
Para registo instrutivo das criancinhas, convém esclarecer que se fosse eu, um cidadão tão anónimo como todos os cidadãos anónimos, a consumir cocaína (esporadicamente ou de forma assídua), não o deveria confessar em público. Não por ser crime, que o consumo de estupefacientes não é crime; mas por constituir um crime ainda maior, que é o da exposição à “censura social”, essa tão implacável espada de Dâmocles urdida por tantos polícias dos costumes. De mim diriam ser um drogado – menos os que admitem que a cocaína é uma droga feérica, um fator de pertença às altas camadas sociais – , com o que o epíteto tem de depreciativo. Mas se aos costumes Iggy Pop, na sua irreverência, diz nada, os costumes parecem estar adormecidos (ou serem especialmente indulgentes) quando Iggy Pop confessa ter consumido cocaína.
(Ou então, petizes, isto tudo é só para admitir a inveja de Iggy Pop...)
Tears for Fears, “Shout”, in https://www.youtube.com/watch?v=Ye7FKc1JQe4
O tempo é sujeito dos objetos esculpidos. O tempo antes do tempo não é bom conselheiro. Mas um numeroso contingente procura levantar o véu ao futuro, como se fossem voyeurs infringindo a contingência. Querem ter uma ideia aproximada do futuro. Desconfiam da viabilidade do presente e concebem a hipótese de viverem três passos à frente dos demais (que devem ser uma multidão, a julgar pela generalização dos oráculos). Intuem a possibilidade de forjarem o tempo antes de ele ser. Uma profecia que corresponde a um desejo, como se o tempo fosse património exclusivo de quem se julga seu escultor. Não se sabe que futuro tem o futuro. Não se sabe se o futuro se importa com o seu futuro. E, no entanto, gente comezinha perde-se no labirinto da memória futura, desfazendo-se num nada de quem passa ao lado do tempo que é presente. O futuro é aquilo que nem o futuro sabe o que é. Se fosse para o adivinhar, não se chamava futuro. Viveríamos despojados dessa dimensão do tempo, perpetuando o presente como se fosse o particípio passado de um futuro que não chega a acontecer. Se este é o futuro do futuro, é mais um incentivo para as pessoas tirarem do sentido a ciência do pressentimento do futuro. Pode haver quem se sobressalte ao saber que não sabe nada sobre a página do tempo doravante. A contingência e a incerteza somam o peso morto de insegurança. Há quem não saiba conviver com a insegurança. Ato contínuo, deitam-se ao futuro. Como se fossem os seus astrólogos e os vaticínios coabitassem com os desejos interiores, transfigurados em concretizações a destempo e sem materialização. Este é um futuro sem futuro; um futuro adulterado, que mal se julga adivinhado é dissolvido na penumbra. As pessoas deviam-se esquecer do futuro.
The Dandy Warhols, “Get Off”, in https://www.youtube.com/watch?v=ON6pn6suSzc
Um jornal de grande circulação traz na capa: um autarca, apanhado na teia da corrupção, vendeu-se por vinte e cinco mil euros. A ambivalência das palavras por vezes sequestra os jornalistas, que nem dão conta do risco de serem treslidos. À primeira leitura, o título dá a entender que o autarca se desgraçou por uns míseros vinténs.
Devia haver um preço mínimo para ser corrompido. É voz corrente, entre o povo menos dado aos punhos de renda da filosofia moral, que para ser corrompido, que seja por uma verba que arrume a vida, e para bem, de uma vez por todas. Talvez este devesse ser o critério: é preciso medir o benefício proporcionado pela corrupção contra o risco de ser apanhado em falso. Para uma pessoa borrar o rosto com a sanha da corrupção, que seja por um valor que compense o risco (até porque a justiça anda depressa como uma lebre, quando anda...).
Arrisco um contributo suplementar para a epistemologia da corrupção: a medição seria feita em função do acontecimento que dá origem ao ato corruptor. Se a obra pública a concurso é pequena, não se justificam luvas avultadas; se for daquelas infraestruturas que recebem gordo subsídio da União Europeia, justificar-se-á que as alcavalas pagas pelo corruptor enxertem fartos sinais de abastança no património do corrompido. Os riscos assumidos devem ser aferidos pela bitola do que está na origem da corrupção.
Proponho, ainda, que a aferição não seja proporcional à dimensão do objeto a concurso e ao valor das alvíssaras deixadas em envelope sob a mesa. Quanto maior for a dimensão do que alimenta a corrupção, o pagamento não declarado deve aumentar mais do que proporcionalmente. Não é o mesmo ser utente dos calabouços por ter recebido dois mil e quinhentos euros ou dois milhões e meio de euros como paga pelos especiais favores. O segundo corrompido irá cumprir pena de prisão mais demorada. Eis a dimensão dos riscos que os corruptos devem estar preparados para assumir.
Tive um professor na universidade que confidenciou, enquanto aguardávamos o comboio, que toda a pessoa é um alvo potencial de corrupção. Depende do preço que o corrompido estabelece. No seu caso, o preço foi tabelado com excêntrica ambição: fazerem dele rei de Inglaterra. Quem ler precipitadamente a capa do jornal de grande tiragem concluirá que o autarca se vendeu por meia dúzia de tostões. O povo dele dirá que foi pelintra em descausa própria, pois o povo, tão sapiente, tira da cartola a sublime advertência: já que era para se enodoar, que fosse por um dinheiro que se visse.
Quero acreditar que o jornalista que fez a capa do jornal foi vítima involuntária da ambivalência das palavras. Ou então, sou muito ingénuo.
Yard Act, “Land of the Blind” (Live at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=y-n5N8DrkZQ
Na série televisiva O Novo Papa, Borriello é a eminência parda, o secretário do Vaticano que conspira na sombra, arregimenta aliados e acantona inimigos e divide para reinar, sempre usando a sombra. Aparece na retaguarda dos Papas, mas ele é que comanda os cardeais quando estes se reúnem em conclave para eleger um novo Papa. Borriello é que detém a matéria-prima do poder. Humildemente curva-se perante o Papa de que é servidor, mas antes manobrou nos bastidores para condicionar a decisão papal. É o todo-poderoso, o campeão olímpico dos manipuladores, escondido atrás do biombo, o lugar onde põe e dispõe. O lugar que é o seu habitat natural.
Mas Borriello é ambicioso. Não chega o poder que detém, as manobras políticas que servem para devastadores xeques-mate aos que ousarem fazer-lhe frente (numa, às vezes, ostentação orgiástica de poder). Não chega ter os Papas na mão, sendo o mais poderoso na Igreja. Borriello já é septuagenário e sente que chegou a sua vez de sair da sombra e fazer coincidir o poder factual (o do Papa) com o seu. Morto o Papa, Borriello liberta os sonhos e começa a sentir o deleite da cadeira papal. É a sua vez.
Mas o entontecimento distrai-o das coisas que interessam ao exercício do poder. Ao chegar a Papa, Borriello deixa de ser Borriello. Não é legítimo que acumule o exercício do papado com jogos de bastidores. Para estes, existe o secretário do Vaticano. Depois de ter sido secretário do Vaticano décadas a fio, Borriello perdeu a sinecura com a investidura papal. De repente, o novo Papa sente o chão a fugir-lhe sob os pés, sente que o poder efetivo (não o poder factual, que esse não interessa) já não é seu. Ainda vai a tempo de retificar. Nomeia um novo secretário que é seu homem de mão. Diz-se: Borriello vai ser um Papa com duas cabeças, a cabeça escondida continuando a ostentar garbosamente as vestes de secretário. Borriello torna-se Papa e continua a ser secretário por interposta pessoa. Há o Borriello Papa e o Borriello de sempre.
Mas Borriello sente orfandade. Sendo curta a trela que mantém acorrentado o novo secretário, o novo Papa não pode interferir com a coisa mais política que é deixada, tem de ser deixada, ao secretário. E este começa a voar. Vai cortando o cordão umbilical. Borriello sente que já não é Borriello; o novo secretário, com o vagar do tempo e com o socorro dos gestos dissimulados, começa a ser uma personificação de Borriello. É um lídimo seguidor de Borriello.
O poder não reside nos que são seus titulares. Tem morada nos que os aconselham, os que fazem o trabalho de casa e insinuam estudos que, desse modo, comprometem a decisão do formalmente detentor do poder. Este é um poder que se joga numa cortina de espelhos, a primeira camada não passando de um coro de fingidores que se embriagam na exibição de um poder contudo fátuo. É na camada inferior que tudo se joga. Por isso, Borriello foi adiando o dia em que deixaria de ser Borriello. A ambição da pose institucional e a sede do poder formal esvaziaram o Borriello que Borriello aprendeu a conhecer.
Neil Young, “Act of Love” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=HqXT-YR2Tmw
Os carrascos são dispensáveis. Em vez de lucidez, a loucura fez-se verbo farto. É o que dizem: em vez de se esperar pela serenidade, levanta-se a voz contra o estabelecido. Os que conservam o estatuído não perdoam. A ordem, para eles, é a legítima prioridade. Os que vierem em contramão serão punidos.
Os que andam em contramão não confessam. Seria uma capitulação que a rebeldia sem freios não permite. Se transigissem, seriam apanhados pelo engodo do estabelecimento. Ao andarem em contramão seriam declarados em contramão. A reincidência como critério é a caução que precisam. Participam da clandestinidade. Não querem lesar os outros; apenas a insurreição como método de pertença. Se os reclamam como parte de uma pertença, dissidem. Não admitem tatuagens contra a sua vontade, forjadas a fogo vivo; sentem-se gado. Não transigem com a perenidade que veda a escotilha por onde veem o exterior.
A insubmissão deixa-os à margem da ordem – e das ordens que lhe são consequentes. Não dão conta que escolhem um critério. Seguem-no. Seguem uma ordem, por mais que contrarie a ordem estabelecida, mas é a sua ordem. Deste anátema não se desprendem: uma dissidência corporiza uma alternativa; a alternativa não deixa de conter uma ordem. Por serem insubmissos, omitem a mnemónica irrecusável: quem segue uma ordem obedece a uma constelação de ordens. O esvaziamento do poder é um poder de sentido contrário, por mais que o ornamentem com o sugestivo rótulo de “anarquia”.
A antropologia mostra o resto: o tempo amacia as almas e resgata-as para os limites convencionados. Para memória futura, o obséquio do esquecimento para uns, a confirmação do estatuto de outrora para outros. Tomaram consciência que continuar em contramão é insuportável. O risco de colisão frontal é um punhal constante a adejar sobre a jugular. A rebeldia fica por conta do sangue quente que desassossega uma era.
Páginas depois, o sopor transgride o impulso pela contramão. Ordeiramente, antes que sejam arquitetos de uma desordem que se atire furiosamente contra todos – e eles não são dela excluídos.
Mona Linda, “Sr. Robado”, in https://www.youtube.com/watch?v=GwDUqZfUK-A
“Se vierem, não venham.”
Excerto da peça de teatro “Tratado, a Constituição universal”, de Diogo Freitas.
E se rematassem a descontratação dos que foram contratados para falar em nome dos, desse modo, representados? Ficariam estes deslegitimados?
As perguntas não saíam do horizonte. Em silêncio, percorriam o sangue, quase em ebulição, das pessoas sem teias na lucidez. Se não estão a par com a responsabilidade, mandariam os cânones da interior exigência que os ineptos devem vagar o lugar. Em vez de fingirem que estão de atalaia e tutelam o interesse geral, disso não dando cumprimento.
A descontratação é o mínimo exigível. Quem treme de medo não está à altura. Não tem condições para tomar o leme, a não ser que a intenção seja navegar por cabotagem (na hipótese mais generosa) ou deixar a nau entrar em errância vogal (na hipótese mais agressivamente desconfiada). A chave mandatada corre o risco de enferrujar, ou até de se tornar irremediavelmente inútil. A estes tutores que mais parecem interinos, ofereça-se, em gesto de autocomplacência, a porta da saída. Usando a porta dos fundos. Sua é, e notória, a falta de serventia.
À frente do gabinete do tutor-mor, as tílias apodrecem e não é de uma metáfora que se fala. A terra foi apestada pelo inquilino. As tílias embebem na sua seiva o espírito dominante dos vultos que açambarcaram o palácio. Elas não entendem a errância, a desconjuntada verve, as hesitações que confirmam a bússola arruinada, o dano como ónus; não transigem com a arrogância continuada.
Todavia, como há gente que nasceu destinada para a sorte, as pessoas interrogam-se: e depois deles, quem virá? As pupilas inturgescem com a consciência do ermo lugar em que este se tornou. E o senhor tutor-mor escorrega vaidosamente no cadeirão, em pose soezmente imperial, sabendo que depois dele só um delfim diligentemente escolhido terá direito à coroa. Se já há quem argumente que só estes tutores podem conservar o segredo da chave, antes se decrete o resultado antecipado de todos os escrutínios e, de caminho, condene-se ao degredo os que insistirem em preferir os que timidamente se alistam como alternativas.
Um lugar destes, com tutores desta linhagem e tílias assim apodrecidas, nem merece sê-lo. Não há deserto que seja pior.
Nils Frahm, “The Shooting”, in https://www.youtube.com/watch?v=p7sE5AkEQZg
Outro vez, o copo derrubado e quase todo o seu conteúdo vertido sobre um corpo. Um incidente. Longe de ser um incidente diplomático, que esses ou se resolvem com paninhos quentes ou à força de bomba (caso em que se não dirá que vingou a diplomacia). O copo agora quase vazio e a roupa ensopada. Podia ser pior. Se o copo se estilhaçasse diretamente em cima do corpo e o sangue derramado fosse a prova de um acidente.
A teoria dos incidentes serve para mostrar que a perfeição não é etimologia da condição humana. A mão escorregadia, porque eventualmente suada; ou uma distração momentânea somada ao proverbial desastrado; ou até uma qualquer conjugação cósmica (acredite-se, para efeitos do enredo), que findou com o desequilíbrio momentâneo dos elementos envolvidos – seja qual for a raiz do acontecimento, não passa de um incidente. E os incidentes devem ser tratados como tal. Não merecem uma apoquentação medida na escala de Richter. O copo derrubado e as consequentes roupas ensopadas não chegam a constituir um abalo sísmico.
Um assinante de incidentes sucessivos poderá contrapor com o desassossego que é ser algoz e vítima de incidentes. Propõe-se uma trégua que enxerta alguma relativização nos incidentes: se preciso for, o assinante de incidentes deve-se socorrer do dicionário para emoldurar o significado de incidente. Os incidentes não se amparam no corrimão da matéria dramática (e menos se diga, melodramática). Ultrapassam-se, de preferência com destreza olímpica. Relativizam-se.
Um contratempo é uma curva inesperada que interrompe a planura da paisagem. Mas nem todo o chão é feito de planura; ele há cordilheiras que somam embaraços à conta das inclinações, dos desfiladeiros que obrigam a recriar o caminho, dos precipícios que podem cobrar as vidas mais distraídas. E, todavia, consta dos manuais que a geografia se compõe de beleza por conta das montanhas que desfazem a serenidade da paisagem. São incidentes que não cobram vítimas (a não ser os estouvados que desafiam o sossego da montanha).
Do tirocínio que levamos para memória futura devia constar uma teoria geral dos incidentes. Para não sermos apanhados no estábulo onde os efeitos indesejáveis de um incidente se sobrepõem à mercê da lucidez ausente.
Manuel Fúria, “Os Perdedores”, in https://www.youtube.com/watch?v=6B4Irxh5690
Todos somos, alguma vez, perdedores. E só temos a ganhar em assumir que perdemos algo, sobretudo quando é a honra, a dignidade, ou apenas a imagem que temos de nós mesmos, que integra a equação. Contrariando os oráculos afinal desavisados, o ridículo não mata. E, se não nos mata, não deve ser a imersão no ridículo que nos apouca.
Podemos ser o protótipo do elefante numa loja de porcelana: podemos derrubar o copo de cerveja que, ato contínuo, desagua aleatoriamente em peças de roupa (do desastrado, ou, o que piora o diagnóstico, da pessoa acompanhante); podemos abrir a boca para bolçar as palavras que nunca deviam ser ditas naquela circunstância e àquela pessoa, ficando com o ónus de todos os demais olhares exercendo um escrutínio censório, razoavelmente censório; podemos ir distraídos na rua e tropeçar num seu pedaço escorregadio, aproveitando os demais para esboçarem um sorriso irreprimível; podemos, se formos artistas de diversas artes, ter o desassombro de fazer arte risível que, talvez por assim ser e por haver críticos empenhados em distribuir prebendas pelos que seriam outrossim vítimas de bullying, alimenta os encómios dos críticos e de quem os segue acriticamente.
Podemos ser tudo aquilo e não dar parte de fraco. Não somos devedores da prostração se derrubarmos o copo de cerveja, se bolçarmos as palavras inoportunas, se cairmos na rua enquanto palco diante de tantos outros, se formos artistas risíveis. Pois todos, sem exceção, já teremos sido apanhados em contramão no amplo estuário do disparate momentâneo, em que somos irremediavelmente desastrados. Contrariando a severidade dos muitos puristas que enxameiam os diversos lugares, não devemos ficar abatidos.
Devemos fazer das fraquezas forças e dar a volta por cima. Devemos levantar a mão logo após derrubarmos o copo de cerveja, para todos os olhares limítrofes depressa se certificarem quem é o desastrado de serviço. Devemos levar essa mesma mão ao peito logo a seguir a bolçarmos as palavras que exatamente não deviam ter sido ditas, para os atingidos (e os demais, céleres no exercício do repúdio) se certificarem da imediata exculpação. Devemos ser os primeiros a aplaudir a nossa queda estrepitosa na rua, em antecipação ao sorriso de escárnio dos perfeitamente equilibrados. Devemos ser B Fachada ou Manuel Fúria quando nos apetecer, mesmo que sejamos os primeiros a atirá-los para a reserva denominada de origem da inestética musical.
Porque todos temos direito a ser, num momento que seja, B Fachada ou Manuel Fúria (tal como os próprios).
Nils Frahm, “Says”, in https://www.youtube.com/watch?v=S4EHG0wiUms
(Carta aberta do jovem ministro à sua querida mãezinha)
Querida mamã, espero que esta te encontre bem, pelo menos tão bem como me sinto hoje, após ter acabado de receber o convite do Exmo. Senhor primeiro-ministro para assumir um ministério. Imagino-te, coberta de orgulho e, ao mesmo tempo, incrédula. Eu, o sempre rebelde, aquele que estava sempre atrás na fila dos privilégios, cheguei a ministro! Quem diria? Bem te disse que não me devia filiar no Bloco, quando decidi dar um abraço à política. O PS é o partido certo. O partido do Estado e, por consequência, o partido do país, sem o qual o país não se revê na sua ontologia moderna.
Também imagino as tuas preocupações, sabendo, como sei, que o meu feitio não é dos melhores. Tu o dirás, não sem que eu concorde com o diagnóstico. Tenho-me apenas como irreverente e não precisarás de me advertir, como a devida antecedência, que devo moderar a irreverência porque ela não quadra com a solenidade das funções que passo a exercer daqui a um par de horas, com a pose de estadista exigível a um ministro. Farei os possíveis, mamã. O meu sangue é geneticamente fervente. Sabes a dobrar: sou assim, como o papá o era. Mas farei os possíveis.
Tenho de sossegar a tua angústia: saberei ser um homem de Estado e deixarei de usar linguagem de taberna quando, lá atrás, me envolvia em pelejas digitais com os meus adversários (que são sempre adversários do primeiro-ministro, do partido, do Estado e, por consequência, do país). Juro que não aproveitarei os tempos livres para mergulhar no submundo das redes sociais e desatar à pancadaria virtual com os nefastos inimigos do país (e do Estado, e do partido e, por consequência, do senhor primeiro-ministro e da sua inestimável condução do país). À conta da verve badernista que não sai do espaço virtual tenho livrado o corpo de umas quantas nódoas negras, de umas quantas cicatrizes que seriam dolosas para a minha elevada estética. Lembras-te como fui sensato naquela terreola perdida nos confins do Trás-os-Montes, quando uns néscios (de certeza instigados pela direita) quiseram acertar contas comigo? Lembras-te como fui senhor de uma lucidez que desconhecias e, com o diz o povo, dei às de Vila Diogo?
O meu destino é ser uma figura resplandecente no governo, agora que serei ministro. É agora, e de vez, que vamos estar na Europa, com uma rede de ferrovia (perdoa o tecnicismo: a palavra está na moda e eu sou de modas) comparável aos países mais avançados. É agora, e de vez, que a TAP vai deixar de um presente envenenado (juro; só ainda não sei como, mas sinto-o tanto).
Sabes, mãe? Sinto que sou maior do que o meu tamanho. Daqui para a frente ainda há uns degraus para subir. Eu quero subi-los. Quero dar o meu contributo para modernizar o país e para o tornar mais socialmente justo. Quero enterrar a direita numa arca onde se ocultam as desmemórias. Até estou disponível a fazer de conta que não gosto da moda e de me apessoar – mas, que raio, não deve um ministro andar apessoado? Pasma: até comecei a usar gravata!
Sinto, minha querida mãe, que este é a alavanca para voos (ainda) mais altos. Ainda há mais montanha para trepar. Agora tenho a certeza que o messianismo não é em vão. Não moderes as esperanças em mim: ainda há mais estrelato para abraçar este teu querido filho, que de ti se despede com o amor filial de que és conhecedora.
GOAT, “Do the Dance”, in https://www.youtube.com/watch?v=FSL9pavM_qk
O dedilhar das cordas de violino. O ressonar de um gato, prova viva de um sono paradigmático. A neblina que repousa nas colinas, embaciando o verde da relva que até então resplandecia sob a custódia do sol. O amontoado de paráfrases, testemunho da desoriginalidade da espécie – e, então, o fruir das imperfeições, a sua assinatura genética. O coro emudecido a falar mais alto do que a cacofonia dos mandantes.
No dia seguinte: a janela do comboio, devolvendo a paisagem consentida. As mãos entrelaçadas, fusão que não precisa de verbos. A colossal montanha que tutela a cidade. As vozes nada estremunhadas que enxameiam o lugar com um postulado transalpino. Sem gaguez, sem a melancolia própria dos austeros nativos. As linhas contíguas que amparam um desequilíbrio estrutural, omitindo-o. Uma tomada de consciência: a filosofia do desmedo não transige com meias palavras nem com hesitações datadas.
E os dias consecutivos: um miradouro que desenha as estrofes centrípetas. O mar sem ondas, uma farsa benévola. Os olhos desamputados de preconceitos. A literatura (alguma). Os espelhos retrovisores que navegam no caudal de um rio nascente. A madrugada, imperial. A maresia que se agiganta contra o muro do silêncio, compondo uma gramática que vive por dentro das veias. O sangue a preceito, desangustiado.
A ideia enraizada de que o tempo não tem fim. Que o mundo não tem fim, como se fosse a negação de Copérnico. As lições da vida colhidas em peças de teatro. O majestoso magma que esconde a grandeza da existência, contrariando o princípio geral da insignificância. O galeão que espera fundear no cais autorizado, e toda a tripulação ansiosa por sentir o calor da terra firme, o calor dos corpos que nela habitam, dos corpos que possam neles habitar. Os ossos que contrariam a rarefação do ar. A neve articular, um trono que pertence a cada audaz que sobe à cumeeira.
A morte (que) não entra no dicionário. O dicionário que não enjeita as palavras interditas, as palavras insubmissas, as palavras que são como beligerância. Pois a vida também é feita de contrafação. De contratempos. A perfeição não é a medida desta vida. Saber dela é tornar puro o que é impuro. A morte, a tremenda bomba relógio sempre à espera de estourar por dentro do corpo, não conta. Ela mata-se a si própria. O deixar de fazer sentido exalta o peso incomensurável da vida. Depois dela, tudo deixa de existir.
Nell & The Flaming Flips, “The Ship Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=0SwgrYF0rG4
Uma mulher, algures, protesta contra a propensão masculina para o adultério. Considera que o ónus do amor, ou da relação com um homem, é a armadura (chifres, diz ela) que as mulheres carregam na cabeça – algumas sem tomarem consciência da condição; outras, conhecedoras a eito. Os marialvas, em conversa de balneário ou numa roda de amigos regada pelos vapores etílicos que, por sua vez, dão asas à virilidade imaginativa, orgulham-se do que, para elas, merece abjuração.
Não seria preciso advertir contra as generalizações para arrumar o protesto daquela mulher. As generalizações ocultam as muitas exceções que, talvez, nem sequer cheguem a ser exceções, antes, comportamento padrão. Contra a boçalidade da conversa de balneário, ou contra as rodas de amigos em que concorre a fanfarronice que disfarça outras fragilidades inconfessáveis, ergue-se uma legítima lei de bronze: não pactuarás, não pactuaremos, com a masculinidade tóxica. Di-lo um homem (o abaixo assinado): aos soezes espécimes do ecossistema da masculinidade tóxica desejo o dobro daquilo de que se orgulham lídimos praticantes. Elas têm tanto direito à poliandria como eles se supõem zeladores da ufana poligamia.
Ora, a abjeta masculinidade tóxica não se combate com uma toxicidade de sinal contrário. Arrumar todos os espécimes do sexo masculino numa indiferenciada cáfila de adúlteros é exagerado e injusto. Sem contar com a ilegitimidade da acusação, pois que homens haverá que são adúlteros sem colherem mulheres como vítimas da seiva do adultério. Quanto aos demais varões, será excessivo, e não representativo, que todos, ou um exército numeroso deles, tiraram bilhete no Nirvana do adultério, incapazes de se regerem pelo mandamento divino da monogamia.
Que fique registado, para os efeitos que interessarem, que me exprimo em nome próprio. Não tenho como usar uma metodologia de recolha de dados que seja à prova do logro (dos inquiridos) – nem julgo ser admissível interpelar cada homem tentando apurar se já cometeu adultério. O que me causa espécie é a propensão para a generalização (neste assunto; mas vale para qualquer outro). Não ponho as mãos no fogo pelos outros. Nem quero parecer advogado de defesa da masculinidade, e de todo da que se encerra nos curros da toxicidade. Mas também não aceito as tábuas rígidas das que denunciam a masculinidade tóxica e, ato contínuo, arregimentam todos os homens na indignidade do adultério.
Poderão contrapor, as defensoras deste método radical, que grandes males exigem grandes remédios: por cada grama de masculinidade tóxica extinta, legitimam-se toneladas de feminismo também ele tóxico, à sua maneira. Não aceito a equivalência, por mais que a masculinidade tóxica seja repugnante. Às vezes, estas generalizações podem corresponder a um salto argumentativo semelhante a um boomerang. Ou, como dizem os franceses, “honi soit qui mal y pense”.
David Byrne, “In the Future”, in https://www.youtube.com/watch?v=STZC2ZlOZJM
Não sou de escolástica nenhuma que não seja um campo minado. Como o olhar circunspecto do mocho. O ramo elevado serve de atalaia e, todavia, o mocho parece inanimado. Finge a distração e consegue peneirar tudo em redor. Dizem que o mocho não é de confiar.
As rodas truncadas esfolam o asfalto à medida que os quilómetros derretem a distância. Não se sente a maresia. Não se sente o mar por perto – não causa arrepios a ausência de maresia. Se houvesse distância por medir, o asfalto não tinha mapa como património.
Assim sucedia com o amanhecer, todos os dias. Os pensamentos iam e vinham, e vinham sempre como boomerangs. Rebeldes, depois dos sonhos e dos pesadelos (não necessariamente por esta ordem) que visitaram a noite silenciosa. Intuiu que era por falta de pequeno-almoço. Em vez de antecipar, postergou o pequeno-almoço. A companhia da rebeldia dos pensamentos era recomendável para a sanidade do dia restante.
Se os números fossem apenas números, não havia cabalística. Sabemos que a cabalística existe. E também sabemos que a cabalística tem um numeroso exército de seguidores; eis a prova que a cabalística existe. Alguém reparou em primeiro lugar no lugar-comum que o ano nascituro dispensava: ele é um ano ímpar. Pressenti-lo como um ano ímpar poderá não ser apenas um oráculo a destempo, o exercício mitológico da cabalística infrene, mas infundamentada. Um deles, dos mais racionais, mostrou-se logo de pé atrás e perguntou pela cientificidade da cabalística. Ficou a falar sozinho, agarrado ao seu cálice de Porto. Os outros faziam contas de cabeça e punham-se na sela da controversa correspondência entre combinações de números e um qualquer significado (apenas especulativo).
Em vez do resto, o mar continuava a dar à costa, como a lua a obedecer ao calendário com o lacre dos astrónomos. A poesia não estava em extinção. Nem a música. As pessoas continuavam a aderir a frivolidades, e estão no seu pleno direito. Talvez o erro seja de quem as qualifica como frivolidades. Ou de quem despromove a cabalística a uma exagerada astrologia dinamizada por catedráticos do nada.
Também não importava. O ano, de facto, é um ano ímpar. Daí a se antedizer que vai ser um ano ímpar segue a diferença se trezentos e sessenta e cinco dias. Não se inventem califados onde os camelos não passam do jardim zoológico. O futuro, até prova em contrário, ainda é à prova de palpites.