30.1.23

Mau olhado ao mau olhado

Expresso Transatlântico, “Quando Neptuno Deu à Costa”, in https://www.youtube.com/watch?v=OWHkHZBERxk

Que lua franca é esta que habita no sangue exilado? Que mudo rosto se entretece no negro dos xailes que cantam o fado ausente? Que fugitivos procuram searas sem fim como pedestal para uma epifania?

Os povoados pareciam aquelas modas circenses que nos encavalitam num humor trivial. Agora, as pessoas não tinham medo de sair à rua; outro fora o tempo de exílios forçados, a reclusão entendida como vacina fundamental para não ser outra vítima de uma peste inominável. Parecia que um mau olhar adejava sobre os mortais, soprando ao ouvido fantasmas de morte, esqueléticos e, todavia, sagazes na sua empreitada. A diligência derrotou a peste que parecia talhada para derrotar a espécie. Conseguiu-o, temporariamente, com o medo acasalado com o refúgio interior e a concessão, ainda não se sabe se especulativamente imperativa, às estremas excecionais ditadas pelos poderes. 

Agora, vencido o fantasma maior que se apoderou de todas as letras maiúsculas enquanto não teve antídoto, é a nossa vez. A vez de mandarmos mau olhado a esse mau olhado. É a nossa vez de convocarmos os luares radiosos, de desengaçarmos os imeritórios espelhos que embaciaram as nossas silhuetas. Vamos a esses luares inventados no futuro e resgatamos o simples ser, essa desconsciência que parecia ter inaugurado a banalidade – o vazio irrefreável de nós.

Dos negrumes que desenfeitaram as vidas, já só sobra uma memória. Uma distante memória que não se alija do medo averbado, no adiamento das vidas, do penhor contínuo de que fomos involuntários procuradores. Desses negrumes sobram os xailes que compõem os ombros de uns nostálgicos que foram devolvidos à angústia do anonimato. A sua mudez confirma a nossa voz. 

Voltámos às rédeas de nós. Não somos casas assombradas que se despem de paredes. Não somos vozes mudas que se mudam de um vocabulário para uma geografia sem idade. Não somos um sangue letargo à espera de aceitação. Não somos as temíveis entidades que se esgotam num ensimesmar enquanto nos expropriaram os passaportes. Somos as poderosas encenações que somos, encenações que não nos distinguem de atores que sobem aos palcos, pois nosso é o palco de todos os dias, de fingimento em fingimento, tornando mentiras numa metáfora, mudando as consoantes por vogais e deixando que o chão se tome como teto, até ao pensamento ficar do avesso e nós, enfim, habituados. Somos toda essa fragilidade e rimo-nos por tão grande fragilidade ter derrotado os vultos que nos cercaram de caos e distopia.

Pois soubemos do nosso mau olhado fazê-lo mais forte do que o mau olhado que sobre nós adejava. 

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