19.1.23

A biografia de Napoleão é menos importante do que o porteiro do prédio

Underworld, “Low Burn” (live on KCWR), in https://www.youtube.com/watch?v=hNOQTt7AULw

Era grande a algazarra. Um vendaval sem memória varreu o lugar durante dois minutos. Ficaram os estilhaços das vidraças do imponente arranha-céus onde só havia escritórios de empresas de alta finança e de outras que se autointitulam unicórnios. Os nómadas digitais eram abundantes e conviviam com os pós-yuppies que já não são frenéticos como os seus antecessores. O prédio, a joia da coroa da cidade que subira de estatuto a pulso, ficou nu assim que as vidraças foram despenteadas pelo vento desassisado. Quem quisesse, podia espiolhar as entranhas dos escritórios. Quem quisesse, podia apanhar muita papelada bolçada desde as entranhas do arranha-céus. Deixara de haver segredos dos negócios. Diriam os homens de negócios, logo seguidos pelo coro de ingénuos nómadas digitais, que se fora a alma do negócio.

Cá fora, juntou-se a turba que fervilhava de desejo para atestar a linhagem do cataclismo. “Ninguém se magoou”, dizia um homem, repetidamente, enquanto um fio de sangue escorria da fronte pelo rosto abaixo e ele rodopiava de um lado para o outro. As pessoas só queriam saber que não houve baixas humanas. Os danos limitaram-se ao arranha-céus. “Do mal o menos”, balbuciou um interessado no rescaldo da intempérie. Ninguém notou que o homem que dizia que ninguém se ferira estava ferido. As pessoas arrastavam o olhar pelos despojos que foram expelidos pelo edifício, mal este se encontrou desarmado de janelas.

No meio de tanta confusão, o único ferido deixou de comparecer ao inventário da desgraça. Ninguém deu pela sua falta. Parecia que as pessoas estavam inquietas com os danos no arranha-céus. Alguém apimentou as reações instintivas, deitando combustível na fogueira: “a cidade não será a mesma enquanto as vidraças do arranha-céus não forem devolvidas ao seu lugar.”

Uma mulher andrajosa vagueava, o rosto apontado ao chão. Mal-encarada, dela não se ouviu uma palavra, não se viu um esgar sequer, por minimalista que fosse. À lapela, a velha misturava uma reprodução do rosto de Napoleão com os andrajos de quem não tinha céu para se esconder da noite intempestiva. Depois murmurou algo ininteligível, enquanto o cenho se fechava, como se estivesse a saldar contas com o mundo que está de mal com ela (manifestamente). Ergueu o punho, como se fosse um comício do partido comunista, e entoou um pregão repetitivo: “Napoleão, Napoleão, Napoleão, Napoleão.” Ninguém deu atenção à velha. Como não participaram da ferida do único ferido depois de estimados os despreparos do ciclone. 

Não se sabia se havia remotos laços familiares entre a mulher e Napoleão. Ninguém lhe deu atenção. Se fosse o caso, os olhos da turba voltar-se-iam para o homem (o porteiro do prédio atingido) que estava nas vésperas de uma cicatriz logo abaixo do couro cabeludo. Quando menos se conta, os figurões são um zero à esquerda quando se comparam com o mais anónimo entre os anónimos. Só que ninguém sabia do paradeiro do porteiro.

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