9.1.23

Teoria dos incidentes

Nils Frahm, “The Shooting”, in https://www.youtube.com/watch?v=p7sE5AkEQZg

Outro vez, o copo derrubado e quase todo o seu conteúdo vertido sobre um corpo. Um incidente. Longe de ser um incidente diplomático, que esses ou se resolvem com paninhos quentes ou à força de bomba (caso em que se não dirá que vingou a diplomacia). O copo agora quase vazio e a roupa ensopada. Podia ser pior. Se o copo se estilhaçasse diretamente em cima do corpo e o sangue derramado fosse a prova de um acidente.

A teoria dos incidentes serve para mostrar que a perfeição não é etimologia da condição humana. A mão escorregadia, porque eventualmente suada; ou uma distração momentânea somada ao proverbial desastrado; ou até uma qualquer conjugação cósmica (acredite-se, para efeitos do enredo), que findou com o desequilíbrio momentâneo dos elementos envolvidos – seja qual for a raiz do acontecimento, não passa de um incidente. E os incidentes devem ser tratados como tal. Não merecem uma apoquentação medida na escala de Richter. O copo derrubado e as consequentes roupas ensopadas não chegam a constituir um abalo sísmico.

Um assinante de incidentes sucessivos poderá contrapor com o desassossego que é ser algoz e vítima de incidentes. Propõe-se uma trégua que enxerta alguma relativização nos incidentes: se preciso for, o assinante de incidentes deve-se socorrer do dicionário para emoldurar o significado de incidente. Os incidentes não se amparam no corrimão da matéria dramática (e menos se diga, melodramática). Ultrapassam-se, de preferência com destreza olímpica. Relativizam-se.

Um contratempo é uma curva inesperada que interrompe a planura da paisagem. Mas nem todo o chão é feito de planura; ele há cordilheiras que somam embaraços à conta das inclinações, dos desfiladeiros que obrigam a recriar o caminho, dos precipícios que podem cobrar as vidas mais distraídas. E, todavia, consta dos manuais que a geografia se compõe de beleza por conta das montanhas que desfazem a serenidade da paisagem. São incidentes que não cobram vítimas (a não ser os estouvados que desafiam o sossego da montanha).

Do tirocínio que levamos para memória futura devia constar uma teoria geral dos incidentes. Para não sermos apanhados no estábulo onde os efeitos indesejáveis de um incidente se sobrepõem à mercê da lucidez ausente.

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