O navio partiu com as luzes apagadas. Queria sair como um fantasma. Não queria que sentissem a sua falta. Não era por vergonha. As despedidas – sabe-se lá – podem ser um adeus que não se repete. As almas arrefecem os arrependimentos quando não tentam alcançar Everestes impossíveis. Para uns, as despedidas eram evitáveis. Para outros, podiam ser a última vez; eram irrecusáveis.
A galope dos provérbios, a cançoneta incansável que se toma por sabedoria popular, os marinheiros assobiam mansamente. É a sua prece. Os assobios servem para esconjurar tempestades que queiram ser companhia futura do navio. Os marinheiros preferem águas calmas. A ida a terra, com todo o seu corrupio, fica por conta do desassossego. Da sua participação no capital universal do desassossego. Que ninguém se convença que o hedonismo não traz um caderno de encargos.
À noite, já só com a companhia do mar escuro, um marinheiro recebeu a visita de uma sereia. Só os marinheiros conseguirão explicar, se lhes perguntarem, por que os seus sonhos têm sereias assíduas. Safaram-se dessa empreitada: ninguém se lembrou de perguntar e assim se preveniu uma pergunta embaraçosa que ficaria deserta de resposta.
Outro marinheiro, colonizado pela insónia, viajava pelas constelações enquanto partilhava a solidão com o convés. Talvez estivessem a meio de todos os mares, equidistantes entre os lugares com terra mais próxima. Daquele sítio, tanto dava recuar ao cais de origem como avançar para o destino. O navio parecia parado. Ou era o marinheiro que estava cansado de ser marinheiro. O mar, especialmente pela noite, é a tradução da solidão. Para ele não era novidade. Antes de ser marinheiro já sabia o que era a solidão.
Podia ser que o amanhecer mudasse o rosto do dia. Até o rosto do mar. Podia ser que um bando de sereias cortejasse o navio e, com os seus braços tentaculares, trouxesse o navio para a reclusão interior. Seria preparado um festim. As sereias, disfarçadas de fadas do lar, ora de ninfas, ofereciam um manjar à tripulação. Os marinheiros, anestesiados com o encantamento, aprendiam depressa a tratar a soberba por tu. Submersos pela ilusão, sitiados pela promessa de prazeres, tomaram os seus cadeirões como se fossem suseranos de todos os mares. A música, hipnótica, era o palco onde se esgrimiam danças insinuantes. Os marinheiros souberam que as sereias não têm escamas.
Os seus braços inertes antecediam os corpos corrompidos pela boémia. Não se ouvia o murmurar constante das máquinas que faziam o navio avançar. Estava tudo escuro. Já era dia, mas uma escuridão insólita aproveitou-se da distração dos marinheiros e falou pelo tempo fora. Os marinheiros não conseguiam falar. Não importava. Tudo o que queriam dizer pertencia às memórias que não transgridem as fronteiras de cada um. O dia que tratasse das demais diligências.
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