24.1.23

Perguntar não, ofende (a diferença que faz a diferença, ou epistemologia das vírgulas a destempo)

Black Country, New Road, “Good Will Hunting” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=GcbrtaEhJzk

Como somos useiros e vezeiros no mau conhecimento da geografia das vírgulas, tantas vezes as deitamos fora do lugar, era importante uma reciclagem (para os vezeiros) ou a oferta de um curso inteiro (para os useiros). Uma vírgula fora do sítio adultera o sentido da oração. Com a oração adulterada, o destinatário lê um sentido diferente do pretendido pelo emissor. E assim nascem mal-entendidos, que por vezes são entendidos como a ignição para graves crises interpessoais, atritos diplomáticos ou até, em situações extremas, guerras.

Consentir que uma pergunta não participa no programa da ofensa é um lugar-comum – constitui, até, um adágio popular; a um nível mais erudito, é todo um programa da linhagem indagativa da filosofia. Perguntar não ofende. Se for enxertada uma vírgula, a frase fica refém da sua contrafação. Se a vírgula encontrar morada a seguir à primeira palavra, a frase fica redesenhada: “perguntar não, ofende”. É a negação do postulado do adágio, a demissão do método filosófico, “só porque” uns quantos não toleram interrogações que podem albergar um incómodo. Ou então, tudo não passa de um mal-entendido e o fautor da frase não sabe colocar vírgulas no lugar. Escreveu o contrário do que pretendia afirmar. A culpa é da vírgula, dirá. A culpa é dele, que não sabe o paradeiro da vírgula.

Quem fique ofendido com a ofensa dos que assim tomam as perguntas que recebem na volta do correio podem cair na tentação de mudar o lugar da vírgula, avançando-a uma palavra. A frase remexida é “perguntar, não ofende”. Destronam o lugar da vírgula e cobrem-se de razão substancial: quem, no seu juízo, se ofende como uma pergunta que lhe seja dirigida, por mais que a pergunta confronte o perguntado com a halterofilia de uns quantos sobressaltos levantados? A confirmação da ofensa da interrogação teria um valor proibitivo: a censura do interpelante, impedido de formular a pergunta “só porque” o destinatário pode ficar incomodado. As perguntas são um mapa de contratempos. É da sua natureza. Não deixam de ser bem-vindas, sobretudo para quem tem o desassombro de as formular.

Quem arrastou a vírgula uma palavra para a frente tornou-se partidário de uma inutilidade. A frase não precisa de vírgulas, está de saúde intacta se as vírgulas estiverem ausentes. Ao menos, esta colocação indevida da vírgula não adultera o sentido da alocução; infringe uma regra gramatical.

Tal como a partida falsa não é uma falsa partida, será essa a razão para alguns literatos evitarem vírgulas, ao saberem de outros, putativos eruditos, que tropeçam nas vírgulas como se uma castanha quente explodisse na boca? Perguntar não ofende. 

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