Chovia pelas ruas ermas que não vinham ao caso. O chão alagado era a sementeira das lágrimas avivadas nos cristais que transluziam entre o negro das pedras. Se houvesse uma ata para registar os prantos, as tempestades teriam nomes – e não seriam nomes discricionários, como os que os peritos atribuem aos furacões.
Um vulto errava pelas ruas desertas. Não tinha medo da tempestade. Talvez estivesse molhado até aos ossos, não se conseguia perceber se a roupa era impermeável. Ele era impermeável, a julgar para errância metódica e por não capitular mesmo sentindo a fúria da chuva bolçada por deuses iracundos, ou talvez fosse apenas por desdeuses. Não estaria para metafísicas, nem parecia que fosse tropeçar numa epifania antes que um contratempo expulsasse a noite do seu domínio. Antes prosseguisse a demanda, que as horas não assobiavam para o lado.
Cruzou-se com um mendigo (ou seria um estroina, a eviscerar as consequências lancinantes da boémia). O homem cambaleava, meio derruído, enquanto os versos noturnos esvoaçavam nas entrelinhas do tempo e o vulto pairava, como se fosse o mecenas da desordem. Ao começo, o vulto não notou o outro homem. Quando mandou o olhar recuar, não percebeu se era um mendigo trespassado pela invernia ou se se tratava de um boémio que fizera uma escala técnica no eivo do seu interior desassossego. O vulto pensou: “eu já fui como aquele boémio”, dando por garantido não se tratar de um mendigo. Ou então, deu um salto no tempo e atravessou-se no caminho do futuro, querendo obliterar um possível oráculo que pressentia o espectro do mendigo.
A manhã já não era um simples pesadelo às costas da noite. A breve neblina sucumbiu ao sol que depressa seria exigente. As pessoas começaram a sair de casa, lotando as ruas, os cafés, os jardins, os edifícios onde o trabalho se congemina; lotando o silêncio com as suas vozes espectralmente estridentes, corrompendo a noção de silêncio com o seu silêncio melancólico. O vulto adormeceu na penumbra que se abateu sobre a consciência. Já não era assaltado pelos pesadelos que sofria enquanto o sono era consumido por insónias. Revoltou-se contra a indulgência dos que sopesavam a maresia enquanto ditavam decretos de generosidade. “São uns pulhas”, ainda foi a tempo de vociferar, vagarosamente, enquanto o corpo se anestesiava no, enfim, sono. Sempre detestou a generosidade exibida pelos outros. Sempre detestou o fingimento.
Quanto ao boémio (ou seria um mendigo), não há sinal do seu paradeiro.
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