12.1.23

O que seria de Borriello se Borriello fosse a Papa e Borriello deixasse de ser Borriello?

Yard Act, “Land of the Blind” (Live at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=y-n5N8DrkZQ

Na série televisiva O Novo Papa, Borriello é a eminência parda, o secretário do Vaticano que conspira na sombra, arregimenta aliados e acantona inimigos e divide para reinar, sempre usando a sombra. Aparece na retaguarda dos Papas, mas ele é que comanda os cardeais quando estes se reúnem em conclave para eleger um novo Papa. Borriello é que detém a matéria-prima do poder. Humildemente curva-se perante o Papa de que é servidor, mas antes manobrou nos bastidores para condicionar a decisão papal. É o todo-poderoso, o campeão olímpico dos manipuladores, escondido atrás do biombo, o lugar onde põe e dispõe. O lugar que é o seu habitat natural.

Mas Borriello é ambicioso. Não chega o poder que detém, as manobras políticas que servem para devastadores xeques-mate aos que ousarem fazer-lhe frente (numa, às vezes, ostentação orgiástica de poder). Não chega ter os Papas na mão, sendo o mais poderoso na Igreja. Borriello já é septuagenário e sente que chegou a sua vez de sair da sombra e fazer coincidir o poder factual (o do Papa) com o seu. Morto o Papa, Borriello liberta os sonhos e começa a sentir o deleite da cadeira papal. É a sua vez. 

Mas o entontecimento distrai-o das coisas que interessam ao exercício do poder. Ao chegar a Papa, Borriello deixa de ser Borriello. Não é legítimo que acumule o exercício do papado com jogos de bastidores. Para estes, existe o secretário do Vaticano. Depois de ter sido secretário do Vaticano décadas a fio, Borriello perdeu a sinecura com a investidura papal. De repente, o novo Papa sente o chão a fugir-lhe sob os pés, sente que o poder efetivo (não o poder factual, que esse não interessa) já não é seu. Ainda vai a tempo de retificar. Nomeia um novo secretário que é seu homem de mão. Diz-se: Borriello vai ser um Papa com duas cabeças, a cabeça escondida continuando a ostentar garbosamente as vestes de secretário. Borriello torna-se Papa e continua a ser secretário por interposta pessoa. Há o Borriello Papa e o Borriello de sempre.

Mas Borriello sente orfandade. Sendo curta a trela que mantém acorrentado o novo secretário, o novo Papa não pode interferir com a coisa mais política que é deixada, tem de ser deixada, ao secretário. E este começa a voar. Vai cortando o cordão umbilical. Borriello sente que já não é Borriello; o novo secretário, com o vagar do tempo e com o socorro dos gestos dissimulados, começa a ser uma personificação de Borriello. É um lídimo seguidor de Borriello. 

O poder não reside nos que são seus titulares. Tem morada nos que os aconselham, os que fazem o trabalho de casa e insinuam estudos que, desse modo, comprometem a decisão do formalmente detentor do poder. Este é um poder que se joga numa cortina de espelhos, a primeira camada não passando de um coro de fingidores que se embriagam na exibição de um poder contudo fátuo. É na camada inferior que tudo se joga. Por isso, Borriello foi adiando o dia em que deixaria de ser Borriello. A ambição da pose institucional e a sede do poder formal esvaziaram o Borriello que Borriello aprendeu a conhecer.

Agora, Borriello é apenas o Papa.

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