2.1.23

Ano ímpar

David Byrne, “In the Future”, in https://www.youtube.com/watch?v=STZC2ZlOZJM

Não sou de escolástica nenhuma que não seja um campo minado. Como o olhar circunspecto do mocho. O ramo elevado serve de atalaia e, todavia, o mocho parece inanimado. Finge a distração e consegue peneirar tudo em redor. Dizem que o mocho não é de confiar. 

As rodas truncadas esfolam o asfalto à medida que os quilómetros derretem a distância. Não se sente a maresia. Não se sente o mar por perto – não causa arrepios a ausência de maresia. Se houvesse distância por medir, o asfalto não tinha mapa como património.

Assim sucedia com o amanhecer, todos os dias. Os pensamentos iam e vinham, e vinham sempre como boomerangs. Rebeldes, depois dos sonhos e dos pesadelos (não necessariamente por esta ordem) que visitaram a noite silenciosa. Intuiu que era por falta de pequeno-almoço. Em vez de antecipar, postergou o pequeno-almoço. A companhia da rebeldia dos pensamentos era recomendável para a sanidade do dia restante.

Se os números fossem apenas números, não havia cabalística. Sabemos que a cabalística existe. E também sabemos que a cabalística tem um numeroso exército de seguidores; eis a prova que a cabalística existe. Alguém reparou em primeiro lugar no lugar-comum que o ano nascituro dispensava: ele é um ano ímpar. Pressenti-lo como um ano ímpar poderá não ser apenas um oráculo a destempo, o exercício mitológico da cabalística infrene, mas infundamentada. Um deles, dos mais racionais, mostrou-se logo de pé atrás e perguntou pela cientificidade da cabalística. Ficou a falar sozinho, agarrado ao seu cálice de Porto. Os outros faziam contas de cabeça e punham-se na sela da controversa correspondência entre combinações de números e um qualquer significado (apenas especulativo).

Em vez do resto, o mar continuava a dar à costa, como a lua a obedecer ao calendário com o lacre dos astrónomos. A poesia não estava em extinção. Nem a música. As pessoas continuavam a aderir a frivolidades, e estão no seu pleno direito. Talvez o erro seja de quem as qualifica como frivolidades. Ou de quem despromove a cabalística a uma exagerada astrologia dinamizada por catedráticos do nada. 

Também não importava. O ano, de facto, é um ano ímpar. Daí a se antedizer que vai ser um ano ímpar segue a diferença se trezentos e sessenta e cinco dias. Não se inventem califados onde os camelos não passam do jardim zoológico. O futuro, até prova em contrário, ainda é à prova de palpites.

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