Multimilionários reunidos em Davos pedem que os governos aumentem os impostos que eles pagam. Contextualizam: em tempos tão difíceis, os governos devem ativar a redistribuição ao máximo. Um comentador glosa as capas dos jornais num programa de televisão. Detém-se na notícia que vem de Davos. Começa a especular. Os multimilionários estão empenhados numa campanha que é, ao mesmo tempo, de relações públicas pessoais e de salvação do capitalismo.
O comentador faz um favor à audiência e expande o raciocínio. Os multimilionários estão ao corrente dos tempos de chumbo por que todos estão a passar, agora que o espantalho da inflação foi ressuscitado e deixou de ser (pelo menos para os que têm memória de muito curta duração) uma curiosidade arqueológica. Os pobres são as principais vítimas de uma inflação destas. Ato contínuo, os multimilionários ensaiaram em estratégia de sobrevivência, sua e do capitalismo de que são principais intérpretes. Para conter o potencial de sublevação de turbas a definhar no pedestal da inflação, os muito ricos querem salvar o rosto antes de ele ser condenado pelos efeitos imprevisíveis de uma revolta alimentada por uma inflação febril. A estratégia consiste em abrir o flanco a impostos mais elevados, para que a redistribuição possa ter alimento musculado. Querem pagar mais impostos para travar uma revolução de que seriam vítimas. O aumento dos tributos é um expediente para salvar o capitalismo da sublevação dos povos.
O comentador começa a puxar lustro ao pessoal oráculo. Nada disto é genuíno. Os multimilionários só se importam com a sua abastança. Ensina a História (e, possivelmente, Marx), os muito ricos nunca tiveram sensibilidade social, nunca foram generosos com os pobres e sempre quiseram manter estatuto e privilégios, oprimindo os outros sempre que foi preciso. De acordo com o comentador, a isto chama-se “neoliberalismo”, ou capitalismo de casino.
O comentador é o testa-de-ferro de uma plêiade de intelectuais especialistas em passarem para a teoria o que corresponde aos seus íntimos desejos. À falta de provas que corroborem o argumentado, sentam-se em cima da elevada craveira intelectual e dão a paternidade a uma epistemologia do “é-assim-porque-eu-acabei-de-o-estabelecer”. Utilizam uma grelha de leitura, que se apoia nas ideias em que se inspiram, para adivinhar comportamentos. Como do passado não há provas da sensibilidade social dos muito ricos nem apetência para a redistribuição através dos impostos dos mais ricos a favor de subsídios para os mais pobres, extrai-se uma certidão do passado para selar a ata do presente e do futuro. Os multimilionários estão-nos a tentar vender um logro. Sem que o comentador mostre provas do ardil que motiva os multimilionários, cuidando de generalizações que são a parte fraca quando medidas como critério, rematando com o logro de que somos vítimas se acreditarmos que aos muito ricos, de repente, apetece-lhes pagar impostos mais elevados.
Os pergaminhos dos capitalistas de casino não abonam a seu favor (tirando uns casos – dirão os mais exigentes, escassos – de mecenas). Não é dado a saber ao comentador e a outros que tais, tão excitados com a denúncia dos capitalistas aldrabões, que extrair do passado comportamentos padrão que serão o selo inevitável do futuro, sobretudo quando as circunstâncias se alteraram tanto, não passa de especulação.
Uma especulação não é uma teoria, nem muito menos uma ideia.
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