Dantes, era tudo diferente – já estava cansado de ouvir os Velhos do Restelo que, sem a culpa do poeta fundacional, denigrem a linhagem do Restelo. Se ao menos houvesse uma toponímia que exorcizasse estes vultos não grados que nos afocinham numa melancolia incorrigível, podíamos ter mais esperança na genealogia do futuro. Não parecia ser o caso.
Na pastelaria, a televisão está sintonizada no canal que parece ser assinatura obrigatória (ou pelo menos natural) das pastelarias. Se fizesse um inventário das pastelarias, o meu reduzido sentido estatístico diria que oitenta por cento trazem, através desse canal televisivo, as desgraças e os dramas e as tragédias em primeira mão. Viro-me de costas para a televisão, mas o som tempestuoso continua a agredir o pensamento. Alguém podia avisar a estação de televisão que a vida é muito mais do que desgraças, dramas e tragédias (e a maldita classe política, de que apetece, de repente, gostar, só para contrariar o ainda mais maldito canal televisivo). Alguém podia advertir a humanidade para não comer ao pequeno-almoço desgraças, dramas e tragédias – a menos que cada militante da modalidade sonhe com a misericórdia dos seus pares se no futuro for vítima de uma desgraça, de um drama ou de uma tragédia.
É como o negócio das pastelarias. Não se limitam a vender doçaria. Os clientes podem encomendar salgados e outras iguarias que não pertencem à doçaria (mesmo se, entre o escol da gastronomia, se fundem sobremesas com ingredientes que são próprios dos salgados). Podem almoçar os pratos do dia, que não são doces (pese embora, os gurus da gastronomia muito-à-frente, adicionem um ingrediente doce a um prato principal).
Pelo sim pelo não, pedi um pastel de nata para acompanhar o café e ajudar à digestão do rol de desgraças, dramas e tragédias que colonizava a pastelaria. O pastel de nata sabia a azedo. Desconfio que era por causa da vozearia que passava na televisão. Chamei o empregado de mesa e perguntei se não podia mudar de canal (já que a hipótese de silenciar a televisão era uma heresia: uma pastelaria em silêncio é como fabricar pasteis de nata sem açúcar). O rapaz ficou sem jeito, olhou para o balcão, na direção do homem que seria o seu chefe, e disse, em surdina, que tinha de perguntar ao chefe. Disse-lhe que não valia a pena, pressentindo que o chefe diria categoricamente que não e descarregaria no empregado de mesa a fúria que gostaria de descarregar no cliente, não fosse proibido hostilizar os clientes.
Antes de sair, e ainda faltava abocanhar a última dose do pastel de nata, chamei o empregado, que se chegou a medo. Sosseguei-o: “Deixe lá estar a televisão. Traga-me um rissol de camarão para acompanhar o resto do café, por favor” (e o resto do pastel de nata, pensei sem o dizer). Pois na pastelaria não há só doces.
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