14.8.23

A má tatuagem (short stories #434)

The Murder Capital, “Ethel” (live from Lafayette), in https://www.youtube.com/watch?v=-EUp8tVie_8

          Descoberta a bainha do luar, as pessoas paravam, encantadas, quando o entardecer se recolhia no seu olhar. A claridade demorava a desmaiar, como se o dia fosse narcísico e temesse que a noite pudesse amedrontar as pessoas. Temia que a noite viesse embutida no medo dos espectros que a dominam. Uma estória passava de boca em boca: as pessoas que ficavam extáticas com a noite acabavam por ser tatuadas por um vulto. A pele assoreada não era a mesma. As pessoas acreditavam que a tatuagem era uma maldição. A tatuagem não tinha sido encomendada, fora feita à revelia. Era contra o império da vontade. Estranhamente, não disfarçavam a sua apatia perante outras manifestações de dependência. O remorso da tatuagem era tangível. Era um contrafação, a violação do princípio sagrado da vontade. Consideravam-na a má tatuagem. Podia contaminar o sangue, ao desconfiarem que o sangue era contíguo à pele onde fora deposta a tatuagem pelos vultos erráticos da noite. Também estavam erradas: não há contiguidade entre a pele e o sangue, podiam estar descansadas e deixar que o sono reparasse os medos consumíveis. Configurava-se uma conspiração medonha: seria pela noite, quando as pessoas se dedicavam à boémia, ou quando tinham Morfeu como testemunha, que o vulto procurador da noite assestava a tatuagem. Símbolos ininteligíveis, todavia belos. Reconheciam a estética sublime das tatuagens, mas continuavam a acusá-las de serem más tatuagens. Temiam que a tatuagem fosse um esconderijo para uma das modernas conjurações que sancionam o conhecimento de todos os aspetos da vida das pessoas. A tatuagem era má porque conteria um dispositivo que desnudava toda a vida de quem assim fosse escrutinado. Mas a tatuagem não era nada disso. Não era, sequer, a má tatuagem. Era só uma tatuagem, a colonização da pele por um símbolo discreto e enigmático. Os medos podiam ser esconjurados.

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