1.8.23

Pólvora para que te quero!

The Smile, “Speech Bubbles”, in https://www.youtube.com/watch?v=GWiWIN9TKBs

O tubo de escape troava, rouco, para todos saberem que o boxeur também are adepto do tunning. “As pessouas fazem-se anunciar”, ruminava em silêncio, caso tivesse de se autoconvencer da fibra de ostentação. Um cidadão distraído encostou-se ao seu automóvel, não travou a tempo do semáforo vermelho. Alarmado pelo som metálico, o boxeur saiu do carro para inspecionar os danos. Foi mais o ruído do que o prejuízo. Ainda assim, a amolgadela era visível. Tinham de chegar a um acordo e quem bate por trás assume a culpa – manda o código da estrada.

O cidadão – bem-apessoado – desfez-se em desculpas. Não deixou de reparar no ar contrariado do boxeur. “Não fique maldisposto. A culpa é minha. Vamos assinar os papéis.” O boxeur sentiu a mostarda a chegar ao nariz – como diria o povo, especialmente o que tirou pós-graduação em lugares-comuns e adágios populares –, o boxeur fervia em pouca água. Das palavras levadas à boca pelo cidadão, uma parte (“não fique maldisposto”) fez com que o boxeur ficasse virado do avesso: “mas quenhe é bociê para me diziêre se dievo ficare madispuosto, home?”

“Não se exalte”, procurou o cidadão acalmar o boxeur, vendo as coisas malparadas perante o arcaboiço do boxeur, que nem as tatuagens profusas conseguiam disfarçar. “Não se exalte, já lhe disse que sou culpado”, enquanto o boxeur mudava de cor, as veias do pescoço quase a explodirem e os olhos prestes a saírem da orbita, enquanto crescia para o indefeso cidadão. “Mas bociê é duoido, ou num perciebe a ciena?”, exibindo os músculos fermentados para assustar o cada vez mais indefeso cidadão.

Só que o medo do cidadão bem-apessoado era encenado. O cidadão estar bem-apessoado era um disfarce. “Tenha calma, tenha calma, meu amigo” e esgueirou-se para dentro do automóvel, na direção do porta-luvas, talvez para ir buscar a declaração amigável para sanar o diferendo. “Mieu amigo, mieu amigo?! Mén, tu estás aqui estás a axantrar, fuogo, que cruomo, meu!” 

Já o boxeur investia na direção do cidadão indefeso e este, num ápice, virou o jogo do avesso ao sair do automóvel com um revolver em punho, que encostou à cabeça do boxeur. “Tiveste a possibilidade de resolver isto a bem, ó cromo. Agora vais meter o rabo entre as pernas, vai lá para o teu bólide azeiteiro e desaparece da minha vista.”

Meses depois, esquecido o episódio e apagados os danos pela algibeira de cada um sem intervenção das companhias de seguros, o boxeur deu de caras com o cidadão bem-apessoado (que continuava bem-apessoado, pese embora fosse domingo – para o boxeur, domingo não era dia dos bem-apessoados se apessoarem bem). Era uma cerimónia pública de apresentação de um torneio de boxe. O cidadão bem-apessoado foi apresentado como ministro do desporto e da cultura (por esta ordem). 

Estava explicado por que era bem-apessoado e, todavia, tinha uma arma de fogo escondida no porta-luvas do automóvel. Cego pela memória mal digerida, o boxeur não tinha percebido.

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