Quando se sentem acossados, os comunistas reagem acusando quem os maltrata de serem anticomunistas primários. É uma estratégia que compensa. A vitimização desvia do assunto, porque o assunto incomoda e pode lesar a causa. Quem se coloca na posição de vítima, denunciando ataques infundamentados, granjeia simpatia e desloca a discussão para quem se lhe opõe, acusando-os de serem oponentes primários para os desqualificar – como se fosse proibido ser-se opositor de alguém. Pelo caminho, perde-se o fio à meada do assunto que deu origem à discussão.
Alguns católicos perfilham o mesmo método. Perante posições que se opõem à reunião magna dos jovens católicos sob o alto patrocínio do Papa, os católicos mais acirrados acusam os críticos de anticlericalismo primário. Outra vez: em vez de se discutir o assunto essencial, atira-se o opróbrio para cima dos antagonistas, desqualificando-os por serem “primários” e obrigando-os a arrostar o seu anticlericalismo. Como se não fosse permitido a um ateu ser anticlerical (mesmo que nem todos o sejam). Há quem tenha dificuldades em conviver com a liberdade de expressão e com o direito à diferença.
Por mais que doa a muitos católicos, há perguntas que não podem ficar órfãs. Elas não têm a ver com os custos da operação e se é aceitável o investimento do Estado. Num Estado laico, com a laicidade registada na Constituição, há um chefe de Estado que não disfarça o catolicismo militante e deixa o exercício da função contaminado pelo seu catolicismo militante. Não está em causa o catolicismo de sua excelência, que todo o cidadão, a começar nele, tem o direito a manifestar a fé ou a ausência dela. Não consigo entender como um chefe de Estado, um constitucionalista exímio, não consegue separar a fé do exercício do cargo.
Será um conforto para os católicos, que precisam deste arregimentar presidencial para se salvarem da crise de fé que tem diminuído a militância católica, mas a laicidade do Estado sofre uma amputação. Para um não crente – e, imagino, para um crente institucionalista – a militância de sacristia de sua excelência é lesiva da laicidade do Estado. Se é para sermos um Estado laico só para fazer de conta, não é preciso fingir a laicidade que está escrita na Constituição.
Podem os católicos invocar que o catolicismo é a religião dominante e que os seus direitos de manifestação de fé devem ser defendidos. Não estão em causa. Acredito que nem o “anticlerical primário” defenderá o encerramento de locais de culto e a perseguição de católicos (a menos que gravitem na órbita de supressão das liberdades, que os há). Os privilégios que a igreja continua a ter não batem certo com a Constituição, deixando-a num patamar superior em relação a outras confissões religiosas. O laicismo do Estado não é respeitado e os privilégios dos católicos violam a igualdade entre as confissões religiosas. Esse é um dever de um Estado laico: sem haver religião oficial, todas as confissões religiosas têm (ou deviam ter) os mesmos direitos. Sem inventariar os fieis para aplicar leis de proporcionalidade que não são reconhecidas pela Constituição.
Somos um Estado laico no verbo constitucional, mas não na prática. É perturbador ver cerimónias de inauguração de obras públicas com o alto patrocínio de representantes do Estado sujeitas à bênção do bispo da diocese. Não se pode invocar o “costume”, porque a deslaicização do Estado teria fraturado os ossos desse costume. A menos que seja apenas por superstição (abençoar a obra para lhe emprestar sorte divina) e entramos no domínio do paganismo. É intrigante ver jornalistas muito excitados com o conclave da juventude católica a entrevistarem um membro do clero ou uma jovem peregrina, parecendo que os plumitivos saíram diretamente de um convento para a redação do canal televisivo. É inaceitável que um presidente da república não tenha conseguido despir a sotaina metafórica depois de ter sido eleito, parecendo que representa a hierarquia eclesiástica antes de representar quase onze milhões de cidadãos.
Não se pode tolher a liberdade de credo e, portanto, não se pode impedir que um católico se despeça dizendo “se deus quiser”. Pela mesma medida, pode alguém ficar indisposto se um ateu (talvez imediatamente abjurado como anticlerical primário) ripostar no avesso da moeda, declarando “até amanhã, sem o dedo de deus”? Pode um ateu formular todas estas interrogações sem que os católicos o encostem a um canto, acusando-o de reconhecer deus pela simples negação da sua existência? Pode um ateu não levar com o camartelo do anticlericalismo (e primário, se for para o menoscabar) ao sentir-se invadido pela excitação decretada pela comunicação social quando noticia os preparativos para o conclave da juventude católica? (Como se a manifestação dissesse respeito a uma maioria de cidadãos, não sendo esse o caso, a atestar pelos estudos recentes que identificam um retrocesso do catolicismo e o emagrecimento da hoste dos católicos.)
Pode um ateu propor uma subscrição pública para ser devolvida à república portuguesa a laicidade constitucional sem ser atirado para o anticlericalismo primário?
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