Ainda havia umas pendências. Quase toda a gente estranhou a coligação de contrabando entre o partido e o Bento. Os serviços secretos desconfiavam (é sua função desconfiar de tudo, nem que seja para inventar desconfianças que justifiquem a sua existência). Nos dias seguintes, o comité central não atendia o telefone. Não havia rasto da presença do Bento na sua casa. Nem no trabalho. Depois do contratempo, terá tirado férias – especulava-se. O silêncio do partido parecia comprometedor. Se não havia nada a esconder, por que se tinha escondido no silêncio? A coligação poderá ser uma contrafação, mas há sempre lugar para o inusitado; quem pode reclamar de uma originalidade? Os rumores começaram a correr entre os que habitualmente lhes dão corda. Alguns conheciam o Bento de ginjeira. Outros, o partido. Queriam encontrar uma explicação para o entendimento entre impossíveis. Os que conheciam o Bento sabiam que era anti partido primário. Os que conheciam a vida interna do partido sabiam que o Bento estava entre os primeiros alvos a abater (metaforicamente falando) por ser o testa-de-ferro dos bancos. O rumor ganhou asas: o Bento quis ir à Festa do Avante para ser raptado por uns radicais e assim comprometer o partido. Não foram estes os seus termos quando se entendeu com os embaixadores do comité central. O partido queria sacrificar uns radicais, para dar uma prova de vida dentro da democracia: nada melhor do que salvar o Bento, logo o Bento! As dúvidas ressoaram no mercado dos rumores. Falava-se que o Bento queria ilegalizar o partido ao oferecer-se como vítima de um rapto. Do partido começaram a soar umas vozes sem rosto: o Bento fora, em tempos, um mecenas secreto do partido. No brasido da festa, depois do bilhete postal em que o Bento cumprimentava o patriarca do partido (ambos sorridentes), o Bento e o partido entregavam-se à arte da lavandaria.
22.8.23
Festa fingida (short stories #439)
The Comet Is Coming, “Summon the Fire”, in https://www.youtube.com/watch?v=G55GspnNkBo
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