15.8.23

Um herege é um herege é um herege (carta aberta ao sr. Ferreira)

Death in Vegas, “Hands Around My Throat” (live at Benicassim), in https://www.youtube.com/watch?v=u9Uyh26pdws

Mote: Vamos acreditar que a semente foi lançada por estes dias e que a esperança da conversão irá atingir todos e cada um dos que estiveram presentes e participaram na JMJ. Crentes e não crentes. Esse seria o primeiro milagre da vinda do Papa Francisco. Francisco Mota Ferreira, in Jornal de Negócios, 09.08.23

No rescaldo do conclave mundial dos jovens católicos, os católicos andam nas nuvens (é uma imagem, apenas). Estão exultantes por causa do sucesso da iniciativa. Como se a igreja precisasse deste contar de armas (é uma metáfora) para arregimentar as hostes. Não vem grande mal ao mundo: num mundo feito de crises que se entrelaçam umas nas outras, como se vivêssemos em crise contínua, a igreja também tem atravessado a sua crise privativa. As imagens das multidões no conclave dos jovens católicos, o exalçamento coletivo de quem participou no evento, o banho de fé dos fieis, o atirar à cara dos ateus que este é um país estruturalmente católico (apesar da laicidade constitucional) – tudo compõe um húmus a que ninguém, crentes e ateus, pode ficar indiferente.

Só que a euforia é contraproducente. Não se dá bem com a lucidez. A frase que serve de mote a este texto é todo um programa de euforia inenarrável. Uma manifestação de fantasia. Como correu tudo muito bem e sentiu-se um clamor de fé entre os participantes (e até há notícias que dão conta dos habituais milagres creditados a deus ou uma santa), a seguir virão as conversões. De acordo com o articulista, ainda embriagado pela sua visão do acontecimento, até os ateus (e, possivelmente, os de outros credos) não podem ficar indiferentes ao chamamento da fé. Será um chamamento irrecusável. Ora, quem anda embriagado não pode reivindicar a seu favor um módico de lucidez. Parece o caso.

Não é por a igreja ter na cúpula um relações públicas, contrariando a imagem vetusta e hermética dos Papas anteriores, que a fé, ou a ausência dela, muda de lugar. Deste lugar em que um ateu se situa, o ateísmo não se vira do avesso porque a igreja católica tem um Papa que sabe comunicar sem ser apenas para dentro das sacristias. Sempre ouvi dizer, no tempo em que os Papas eram ornamentos atávicos que incomodavam até alguns crentes não ortodoxos, que a igreja é muito mais do que um Papa. O postulado tem de ser mantido.

A profissão de fé do sr. Ferreira é uma contradição de termos. A igreja – ouviu-se e leu-se por estes dias, até à exaustão – está bem e recomenda-se, tamanha a afluência de crentes ao evento e a exaltação coletiva de fé que puderam partilhar. Se as conversões estão em próxima linha de espera, é porque a igreja precisa ainda de mais crentes. Se precisa de mais gente, é porque a gente que a igreja consegue reunir não é suficiente. Isto prova a fragilidade da igreja católica. Só algo que é frágil precisa de reforçar as hostes para superar essa fragilidade.

Há uma interpretação alternativa da excitação do articulista: a igreja não esconde a pretensão monopolista. Lá vão anos de esforços ecuménicos, traídos pela cláusula de euforia beatífica do sr. Ferreira, que pressente a ocorrência de conversões a rodos. Uns, provenientes de outras confissões, incapazes de dizer não ao apelo da conversão depois de terem sido ungidos pela superioridade do catolicismo. Outros, ateus e agnósticos, não podem ser indiferentes ao chamamento da fé – está escrito nas estrelas. Uma igreja que viesse a ser assim, dominante sobre as outras, acantonando os (possivelmente poucos, de acordo com o oráculo do sr. Ferreira) ateus sobrantes na categoria de hereges, seria uma igreja totalitária. A História ensina que são elevados os custos quando lidamos com totalitarismos da mais variada cepa. 

Eis a cruzada sonhada pela euforia do sr. Ferreira. Para bem dos demais, o Sr. Ferreira fala em nome próprio, sem mandato da hierarquia eclesiástica. 

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