No circo, os trapezistas estavam sempre confiantes. Por mais ousadas que as acrobacias fossem, não se intimidavam. Talvez em antecipação das modernas técnicas de relações públicas (quem aparece perante o público deve exibir boa disposição perene e sorriso de orelha a orelha), os trapezistas desafiavam a lei da gravidade com um sorriso descomplexado. O leigo, que não percebe nada de arneses, collants e camisolas cintadas e se assusta com os malabarismos encenados pelos trapezistas, diria que eles são dementes: quem arrisca a vida com cambalhotas que, correndo mal a função, se saldam com o despenhamento no chão de certeza duro? Como era possível arriscar a vida todos os dias e exibir um sorriso congelado? Os trapezistas sabiam que tinham uma rede de segurança. Um dia, uma criança (talvez sobredotada – ou apenas sem ser atraiçoada pela distração das acrobacias) confidenciou aos pais que tinha a certeza que os acrobatas não seriam tão confiantes se não houvesse rede de segurança. A função era um embuste. O rapaz – talvez não um prodígio, mas apenas a expressão da genética nacional que se extasia com tragédias decoradas a sangue vivo – saiu insatisfeito. Queria ver se os acrobatas seriam intrépidos se a rede de segurança fosse retirada. Não lhe interessava as condições de segurança dos artistas. Não lhe interessava a indignidade de ter um público a assistir, em primeira fila, ao despenhamento de um acrobata se ele desse um passo em falso. Precocemente, bolçou “assim também eu”, como se algum dia conseguisse coreografar as acrobacias. O rapaz foi aprendendo que não é o sangue derramado em tragédias que conta para ilustrar a condição humana. É dar segurança, o abono da vida que se quer prolongada. Foi aprendendo que há armadilhas a rodos, mas que a humanidade soube conquistar a pulso as muitas escapatórias que dissolvem as armadilhas.
9.8.23
Escapatória (short stories #431)
Spiritualized, “Ladies and Gentlemen We Are Floating in Space” (NPR Music Live), in https://www.youtube.com/watch?v=A7FEENQd6UI
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