29.8.23

Desculpas rotas

Sault, “Time Is Precious”, in https://www.youtube.com/watch?v=15zieRlxd-4

As desculpas rotas não têm a mesma linhagem dos ovos rotos. Ainda que seja descabida a comparação entre matéria do foro comportamental e gastronomia, a semelhança amacia o despropósito da comparação. Dos ovos rotos se diz ser uma iguaria, porventura o resultado de um incidente do gastrónomo amador. Aposte-se: o cozinheiro não queria confecionar um preparado que, depois, foi cunhado como ovos rotos. Constituiu uma desculpa conveniente para o preparado que nasceu de um incidente na cozinha.

Uma desculpa rota é o que o lugar-comum alcunha desculpa esfarrapada (ou de mau pagador). Uma mentira mal confecionada, as sucessivas camadas de factos sem coerência, ficando patente, aos olhos do destinatário, que a cronologia não quadra com a métrica do tempo ou que o enredo montado saltou sinapses. A própria desculpa está descosida, deixando largas partes de pele à mostra. São essas partes desprotegidas da pele que amadurecem a desculpa rota; um eufemismo para mentira. 

Antes de ser descoberta, a mentira passa ao largo do radar dos que possam apurar a sua existência. Antes de ser desmascarado, o mitómano tem igualdade de linhagem com os outros mentirosos que juram que nunca mentem. Uma desculpa rota é a autenticação de um amador. É alguém que nem para mentir serve, tão fraca é a ocultação da mentira. 

A desculpa rota desmente a comparação gastronómica. O gourmet reside na mentira consistente que demora na sua revelação, ou que nunca chega a ser revelada. As pessoas que não dão conta da mentira não sabem que ela existe. São capazes de contemplar os mitómanos, de os sagrar como deuses (à espera dos pés de barro, assim seja desfeita a mentira que, todavia, demora a ser consentida pelos que teimam em negar provimento à condição de mitómano e à sua romagem de mentiras). Os intérpretes das desculpas rotas não são tratados com indulgência. Trazem os bolsos descosidos por onde caem os grãos da mentira mal disfarçada. 

Deve-se somar esta injustiça ao imenso rol de injustiças que é agravo do universo. Os menos mentirosos, apanhados no amadorismo das mentiras que se disfarçam de desculpa rota, são atirados para o canto dos hereges. Pelos mesmos que ainda não souberam reconhecer uma mentira válida e insistem em negar ao mitómano essa condição. Os piores é que merecem indulgência. Não trazem ovos rotos, servem comida prescrita que envenena os comensais. E estes aplaudem, em pé. Talvez por dever de solidariedade corporativa.

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