30.8.23

As personagens foram viradas do avesso porque dizem que os tempos são modernos e agora há um novo catecismo para o novo homem novo

Jungle, “Casio” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=yRaJZnlq8bc

Se os tempos mudam, quem somos nós para resistir à mudança? 

(Contudo, não se obste à possibilidade de alguém investir contra a maré dominante, habilitando-se aos pergaminhos do novo velho do Restelo. A modernidade não transfigura a liberdade numa frivolidade.)

Novos imperativos soam com os ventos que sopram dos novos quadrantes. Esses ventos vão assentando, emprestando novos hábitos a que as pessoas são primeiro convidadas e depois, se preciso for, coagidas a aderir. O que ontem era normal, hoje é recusado. Como temos de obedecer às novas bissetrizes determinadas pela sapiência de uma casta, o novo catecismo não compreende apenas o presente e o que vem atrás dele, também tem efeitos retroativos. É como se se impusesse voltar ao passado a reescrevê-lo para ficar coerente com as novas bissetrizes em que devemos assentar.

Personagens da literatura, do cinema, até da banda desenhada, passam pelo crivo dos engenheiros sociais. É preciso tornar as artes compatíveis com o novo compasso que nos orienta. Não importa que o passado ofereça lições sem conta sobre os efeitos nocivos da arquitetura que torce o passado até ele rimar com as preferências do presente. Há personagens que foram sujeitas a uma cura de tabaco, outras que foram convocadas para uma nova orientação sexual, outras que perderam falas por conterem palavras que são heréticas de acordo como os novos censores sociais. Vamos ao passado e trazemo-lo purificado. Ninguém pode contestar a ambição higienista dos novos engenheiros sociais: faz algum mal aspirarmos à perfeição? Sentimo-nos envergonhados com o passado? Mude-se o passado. 

Quem pode ficar indiferente a este exercício pueril que desmente a lei da inamovibilidade do passado? Ensine-se aos petizes, desde os bancos da escola, que não se devem conformar com o passado, pois podem-no mudar quando lhes apetecer. Nada pode mais do que o voluntarismo humano, que contém a privação das impossibilidades. A seguir, a palavra “impossibilidade” vai ser banida do léxico comportamental. 

Há artistas que ficcionam um pé no futuro, tanto é o mistério que o futuro encerra, tanta a previsível pressa para que se cumpra o futuro (sem darem conta que esgotam o presente depressa de mais). Estes novos homens novos, que nos obrigam a ser da sua cepa sob pena se sermos atirados para um atavismo sem direito a asilo, são o avesso daqueles artistas. Resgatam o passado e devolvem-no num estado perfeito. Para o passado não incomodar o presente, perfeito.

A História, parece, está em vias de extinção.

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